quinta-feira, 13 de junho de 2013

Memória de Vieira da Silva...

Maria Helena não tem a simpatia pronta, por isso as entrevistas que dá embatem contra uma superfície lisa, um espelho onde tremem reflexos, onde se procuram teoremas. O repórter tenta desdobrá-la como um pano cuidadosamente enrolado, e sucedem-se os espaços neutros e, de certa maneira, as evasivas. Ela não confia nesse intuito de divulgação, porque o espírito humano não se divulga. A paz e o sofrimento não se divulgam; são fluidos depois de usados, e, no momento em que se praticam, não têm rosto e, assim, não se podem descrever. 

Por isso, para ajuizar da Vieira da Silva, para medir os seus passos no mundo, as entrevistas que ela dá não me servem de nada. É verdade que os nossos encontros se passam mais ou menos como as entrevistas. Não é uma mulher íntima, é uma mulher sócia da emoção e para quem as paixões significaram talvez uma cumplicidade com uma outra realidade que não está presente. Não Deus, porque se confessa ateia ou, pelo menos, anti-clerical. Mas o Deus dos ateus não é menos Deus do que qualquer outro. Esta breve malícia para com a independência física e intelectual das pessoas parece o sintoma duma qualquer profecia, dessas que eu amo, um pouco ameaçadoras, sim, é isso: um pouco como uma ária retumbante, à Verdi, que exige coros amplos e sonoríssimos."

(...)"Todas as vezes em que procurei Maria Helena porque eu estivesse doente, ou desanimada (como foi o caso, em 1965, de eu pensar em deixar o País), aí deparei com a verdadeira presença que não se distrai, não vagueia, não ilude. Maria Helena reage às coisas concretas e essenciais com uma prontidão admirável.

É raro que as pessoas tenham esse respeito pelo essencial. Costumam escapar ao essencial e ocupar-se pormenorizadamente do acessório. E a vida parece nelas um tumulto de confabulações e artes, sem nada de resistente ou de culto. Aproximamo-nos da Maria Helena e ela pode olhar-nos como se fôssemos um objecto mais ou menos preciso mas que não atrai a curiosidade nem o afecto. Mas se tocamos esse registo do essencial, se houver em nós um risco, um alarme, ela actua e torna-se de repente incansável; algo mais do que amizade e incorrupção da aliança humana surge, como uma flor."

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