sexta-feira, 9 de março de 2018

Leituras - Silêncio na era do ruído


O silêncio que vive na rocha
Na parte interior de cada folha
E no espaço azul entre as pedras.

Temos como civilização uma clara dificuldade em suspender o barulho, em permanecer em silêncio num determinado espaço que habitamos. Pascal disse-o em primeiro lugar quando enunciou no século XVII, uma verdade civilizacional, nessa expressão, "todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade de o homem ficar tranquilamente sozinho no seu quarto". A consequência desta incapacidade é a construção de meios, objectivos, formas que captem a nossa atenção. Isso desloca-nos para longe de nós, para o nosso exterior e é uma das razões por que tantos temem esse espaço do sagrado, o silêncio. Não aquele que nos rodeia, mas aquele  em que estamos fundados, o interior.

O silêncio pode ter em si uma construção visível, algo tão substantivo, "como um oceano, ou uma interminável extensão de neve", e essa "majestade", uma companhia viva ou a atmosfera de um temor. É na sua companhia que podemos aprender muito sobre nós próprios. Para o construir em nós o primeiro passo passa por falar com um dos seus elementos primordiais, a natureza. Se há espaços que melhor conduzem esta sinfonia de encanto primordial, ele pode também manifestar-se nos espaços cívicos de cada um. Isso significa conduzir um processo mental, uma escolha, a realização de actividades manuais, um regresso a algo básico e fundador da essência da vida.

Estas escolhas e estas experiências, como o regresso à natureza e a prática de actividades no interior de uma procura conduz o cérebro a desenvolver um processo, implica um esforço pela concretização de uma ideia, de uma experiência. O movimento no interior dessas escolhas e desses espaços conduz a mente, implica um movimento do corpo, constrói uma possibilidade de encontrar o silêncio em nós. Esse é o silêncio tangível, criado por nós no interior das coisas. Essa construção dar-nos-á não só uma atmosfera interior, como um espaço que nos acompanha.

Erling Kagge, homem de grandes viagens aos espaços mais distantes e mais inabitados do planeta, justamente os pólos faz parte de um tipo de aventureiros que viram no movimento uma das formas de contornar a melancolia das sociedades. Em Silêncio na era do ruído, Erling Kagge reflecte sobre o silêncio, o seu valor para cada um de nós, o espaço de vitalidade que ele pode fornecer para essa dimensão de verdade que cada um procura. No fundo na construção do silêncio somos nós os mestres desse templo à beira de cada desafio colocado. Um pequeno livro.  Um grande livro, desses muito raros que falam com o leitor, como se em cada um de nós seja possível chegar a um pólo de extremidade e nele renascer com um sentido próprio, o do silêncio.  

quinta-feira, 8 de março de 2018

Ruy Cinatti


(Lembramos a memória de Ruy Cinatti, um poeta que trouxe as questões antropológicas ao quotidiano que o Portugal do Estado Novo não conhecia. Poeta da preocupação com o desenvolvimento sustentado e integrado das comunidades, do reconhecimento da diversidade do homem e as limitadas capacidades éticas do Poder face ao coração do homem. O poeta também da natureza, como fonte de inspiração, de um sentido humano.)


Paralelamente sigo dois caminhos

Abstracto na visão de um céu profundo.

Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano

Em comunhão suprema, surto e alado

Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira da luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol da alvorada que descerra as pálpebras.

Ruy Cinatti, «Vigília», in http://www.astormentas.com
 

sexta-feira, 2 de março de 2018

Leituras - Entre o céu e a terra

Todas as pinturas negras procuram a intemporalidade estática da forma e todas procuram absorver-nos no insondável mistério das sombras que adivinhamos querer envolver-nos, fechar-nos os olhos. Por vezes é uma experiência religiosa de esvaziamento e recomeço.

A escultura talvez seja, entre as diversas formas de Arte, a que mais ambiciona formar-se numa materialidade, uma substância edificada na construção de um espaço, uma interrogação às suas linhas Parecer ser nela que se labuta uma representação de belo, ora mais austera, como nos calcários da Europa Central e em particular na Alemanha, ou nos cristalinos mármores italianos. Em diferentes materiais, artistas de longos séculos deixaram na pedra expressões de fé, sorrisos de anjos, como uma esperança para acordar novos tempos, ou instantes finais para a eternidade.

A escultura, que nos oferece na pedra ou na madeira extractos de luz em vincos de perfeição é uma expressão de algo que se torna intemporal, as ideias em visão de futuro. A escultura exige uma execução técnica, um rigor com a matéria, mas igualmente obriga o artista a algo que faz da sua criação algo especial. O escultor imagina uma forma no espaço, um pensamento a construir-se e dá-lhe a pureza dos traços num rigor minimalista. Traços para a construção de uma intemporalidade de significados diversos, de abandono de uma experiência do real ou só da nossa natural condição humana de efemeridade. 

Traços que nos devolvem formas civilizacionais de ver o mundo, como a sobriedade germânica, os seus valores iconoclastas, ou a exagerada projecção da realidade que a luz do Sul nos devolve. Traços imaginados e construídos entre uma aproximação mais naturalista, a simplicidade nas formas, elas próprias, expressão emocionada de ideias e esse absoluto de dar à pedra a energia dos elementos, como um Apolo e Daphne de Bernini. 
A escultura como forma de reter a vida, o corpo, o silêncio de Deus, ou a voz no vento a formular um programa capaz de nos identificar com a nossa essência.

Ela é, uma forma de nos fazer chegar a indivisibilidade  do real, esse sonho antigo dos Gregos. Foi dessa conjugação entre sonho e razão, de um abandono em que nos situamos, entre o céu e a terra que Rui Chafes deu conta num pequeno e brilhante livro sobre justamente, a escultura, como expressão artística, como manifestação de vida. Podemos concluir com Novalis, que, cada geração  há-de ser um certo modo, uma "infância do Mundo", a possibilidade de criar novas formas no espaço, feitas de ideias e de belo. 

No fundo saber e compreender que todas as iniciativas são sempre começos e que "estamos sós com tudo aquilo que amamos." A vida e a escultura, como uma ideia nobre, feita de futuro e de possibilidades. Entre o céu e a terra é uma pessoal e emocionada forma de nos apresentar a escultura, como uma das expressões mais humanas da expressão artística.

Imagem - Copyright: Lourdes Castro, 1959. Museu Calouste Gulbenkian.