terça-feira, 6 de junho de 2017

O Homem como cinema (I)

O cinema é criador de uma vida surreal" (Apollinaire)

O homem imaginário está em toda a parte. Não existe  outro. este imaginário substancial que é o núcleo ardente do homem exactamente porque é, a sua realidade escapa à imaginação. Pois a única definição do imaginário é uma só: realidade do irreal. É através da presença maciça do Irreal que nós pisamos o continente insólito da imaginação. Distingue-se do puro sonho a estranha vigília com que o acompanhamos. Aí somos e à segunda potência vivemos o que jamais seremos ou viveremos. Esta não-vida é, em negro ou rosa, a mais profunda vida essencial.

Desde sempre os homens souberam dar-se em espectáculo esta não-vida maravilhosa. A nuvem e o pássaro cumprem no azul as metamorfoses de um corpo prisioneiro da gravidade. O mar enrola-se por nós em vagas surdas da nossa concha de silêncio. Tudo é símbolo pois [o] nosso centro está em toda a parte e o círculo não acaba em parte alguma. esta viagem sem termo, engano de engano entre a imaginação e vida, a literatura a foi por nós durante séculos de prodigioso silêncio.
Viajámos da Ítaca à Índia, erramos a vida inteira nos navios dos mil Ulisses por onde todos os aedos nos embarcaram. Sempre nesse silêncio de leitura, silêncio devorando o silêncio, espaço mágico do sonho escrito onde o universo inteiro encontrou, enfim, o seu espelho. As bodas deslumbrantes, os terrores imaginários da nossa vida a sós, imaginação consigo mesma, tiveram por paredes o silêncio puro do espectador solitário.

Em silêncio, gerações de leitores devoraram os sorrisos, o êxtase, as lágrimas dos paraísos literários. Só a poucos, como ao amante de Francesca, a morte deliciosa encontrou de lábios unidos sobre o texto do Sonho. Esse milagre externo estava reservado às ilusões do tablado e às aventuras cantadas da Ópera. O espectador podia viver no palco a aventura sentada do camarim. Tudo é tapete mágico para quem voa. Mas era um voo lento o do palco e do canto. Os amigos e os impacientes caminhavam à sua frente. Faltava um sonho para sonhar a meias que nos levasse de rastos, a respiração definitivamente suspensa atrás das suas asas indiferentes à distância, ao impossível e à morte e ao além dela. Faltava-nos, em suma, o Cinema.

Eduardo Lourenço, "O Homem como Cinema", in Jornal de Letras, 23.11.2016

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