quinta-feira, 8 de junho de 2017

A melodia das coisas (II)

VI

Pensa, então, na própria vida. Recorda que as pessoas têm gestos abundantes e empolados e palavras incrivelmente grandiosas. Fossem elas, nem que por um instante, tão serenas e ricas como os belos santos de Marco Basaiti, deverias também encontrar atrás delas a paisagem que lhes é comum.

VII
E há também momentos em que, diante de ti, uma pessoa, calma e límpida, se destaca contra o fundo da sua magnificência. estes são raros instantes festivos, que tu nunca esqueces. A partir daí, amas esta pessoa. Isso significa que te empenhas a copiar com as tuas mãos ternas os contornos da sua personalidade, tal como a conheceste naquela hora.

VIII
A arte faz o mesmo. Ela é o amor mais vasto e mais desmedido. Ela é o amor de Deus. Não pode deter-se no indivíduo, que é apenas o portal da vida. Ela tem de passar através dele. Não pode ficar cansada. para se realizar plenamente tem de actuar onde todos - são um. E quando faz a sua dádiva a este um, todos são cumulados de uma riqueza ilimitada.

IX
Como a arte se encontra longe disto, pode ver-se no palco, onde ela diz ou pretende dizer como considera a vida, não o indivíduo no seu repouso ideal, mas o movimento e o relacionamento de muitos. Daqui resulta que ela simplesmente coloca as pessoas lado a lado, como faziam no Trecento, e deixa que sejam elas a criar laços entre si sobre o cinzento ou o dourado do fundo.

X
E por isso, eis também o que se passa. Elas tentam alcançar-se com palavras e gestos. Quase deslocam os braços, pois os gestos são demasiado limitados. Fazem esforços infinitos para lançar as sílabas umas às outras e, ao mesmo tempo, são péssimas jogadoras, que não sabem apanhar a bola. E assim passam o tempo, a curvar-se e a procurar - exactamente como na vida.

Notas sobre a melodia das coisas / Rainer Maria Rilke ; trad. Ana Falcão Bastos. - [Lisboa] : Licorne. 2012. - [22] p. ; 21 cm. - Tít. orig.: Notizen zur Melodie der Dinge. - ISBN 978-972-8661-79-3
Imagem: A morte de Cristo e dois anjos, Marco Basaiti, Alta Renascença, Itália.

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