domingo, 14 de maio de 2017

Leituras - Fantasmagorias

"Como é bela uma rua no Inverno! Ao mesmo tempo explícita e obscura. Aqui, é possível traçar vagamente avenidas direitas e simétricas feitas de portas e janelas; aqui, debaixo dos cendeeiros, flutuam ilhas de luz coada, por onde passam, rapidamente iluminados, homens e mulheres que, apesar de toda a sua miséria e desmazelo, transportam qualquer coisa de irreal, um ar de triunfo, como se tivessem fugido da vida, de modo que a vida, iludida por quem a despojou, erra sem eles. Mas, mesmo asssim, ainda estamos a deslizar suavemente pela superfície das coisas." (1)

Em diferentes latitudes, a cidade surgirá no século XX como uma grande metrópole, onde uma atmosfera definirá grandeza e misérias humanas, ruínas e sonho, imaginário do fantasmagórico. Virginia Woolf viu na Londres dos anos vinte do século XX, "um poema", "uma história" que se revela nos seus passeios pelas suas ruas e espaços. A cidade e Londres em particular foi para a autora de As Ondas uma personagem essencial da narrativa literária por ela criada nas primeiras décadas do século XX.

Já em Mrs. Dalloway Virginia Woolf nos revela essa deambulação pela cidade, o reconhecimento de ruas, a sua toponímia, a sua atmosfera, onde circulam personagens de diferentes tempos que se inscrevem como uma intimidade. A cidade como elemento formador de uma memória, onde circulam os espaços afectivos de diferentes pessoas, onde cada um se defronta com um mundo interior inacessível e um exterior, capaz  de construir uma evasão no tempo. 

A cidade integra-se num movimento social e cultural e faz das suas ruas, dos seus edifícios um construtor de vivências. Estas manifestam-se entre a multidão que habita um urbanismo explosivo de verticalidade, espaços concentrados de um efémero, por onde a fantasmagoria se ininue de um modo persistente. A atmosfera de fantasmagoria apreende-se na iluminação pública, ainda a criar atmosferas de imprecisão, de indefenível, ou dessa junção de real e visonário, um estado preparatório de um pensamento.

A cidade formula uma atmosfera, onde estruturas físicas paracem dotadas para uma certa forma de viagem que se realiza na descoberta de objectos e que eles próprios são indutores da ideia de evasão, mas também instrumentos de um registo como o lápis ou os livros de uma livraria antiga. Viagem em si por aquilo que ela desvenda, pela recuperação de um tempo que se perdeu e a sua integração no presente, no quotidiano que se vive. Viagem que edifica um pequeno momento de ternidade, quando essas relíquias se erguem para nós.

(1) Virgina Woolf. (2016). Fantasmagorias. Lisboa: Feitoria dos Livros.

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