quarta-feira, 31 de maio de 2017

Leituras - Marcovaldo

"Basta começar a não aceitar o próprio estado presente e sabe-se lá aonde chegar: agora Marcovaldo para dormir precisava de qualquer coisa, que ele não sabia bem o quê, já nem um autêntico silêncio completo lhe bastava, mas sim um fundo de rumores mais macio que o próprio silêncio, uma leve brisa que passa pelo mais denso do bosque, ou um sussurro de água que brota e se perde..." (1)

Marcovaldo, ou as estações na cidade é um pequeno livro de Italo Calvino que nos dá a dimensão do homem prisioneiro na cidade, quase fechado ao mundo natural. Marcovaldo é o registo da sobrevivência de grupos humanos, entre casas modestas, o trabalho mal pago e uma burocracia dos ambientes. Marcovaldo é o retrato da cidade massificada, das ausentes possibilidades de viver em comunhão com a natureza, esse mundo de plástico e veneno que tudo destrói, os sonhos mais simples, a vida mais perfeita.

São as cidades burocratizadas, as metrópoles do consumo, como um valor de vida, de espelho face a todos os outros. A esperança, a fazer sonhar Marcovaldo, tantos como ele, de que também circulará nas suas necessidades, o escasso dinheiro e o acesso a bens essenciais. Cidades de egoísmo, de desfile de vaidades e da abnegação dos excluídos. Marcovaldo, ou as estações na cidade é uma sátira construída com o uso da ironia para desvendar tipos humanos, formas de urbanidade e a sua viagem em espaços, apenas aparentemente abertos.

Cidades com o natural na sua periferia, como um jardim zoológico, onde o silêncio e o verde estão domesticados, para a distância do olhar, evasivos passos de instantes. Cidades sem imaginação, percorrida por multidões, onde pequenas mudanças climáticas faziam sonhar Marcovaldo com o quotidiano liberto da prisão em que se funda. Cidades servidas por pessoas que alimentam um fluxo de necessidades, de desejos alheios e que não lhes devolvem o sonho, uma equilibrada forma de humanidade.

Cidades de imagens, de ruído, onde nada redime vidas, "de uma tristeza desbotada e pardacenta". E, no entanto uma simples planta podia num canto esquecido compor com as gotas de água um verde brilhante, alargar o natural nos sonhos de um Homem. Esse homem mal pago, de carências múltiplas e que via em pequenos momentos uma outra cidade, "uma cidade de cascas de árvore e escamas e nervuras por baixo da cidade de tinta e alcatrão e vinho e estuque" (2). Marcovaldo, um homem perdido na cidade, era esse homem à sua margem que imaginava os olhos dessa invisibilidade, a luz mais cadente do sonho.

(1; 2) - Italo Calvino. (2014). Marcovaldo, ou as estações na cidade. Lisboa: Teorema.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Leituras - LisboaLeipzig1

“Gostaria que sobrevivesse a afirmação que nós somos epifanias do mistério, e mistério que nos nossos balbuciamentos se desenrola.” (1)

A palavra foi-nos dada como ferramenta, como oportunidade viva de nomear as coisas, de encontrar formas de identificar a melodia das coisas e fazê-las integrar no que vemos. A palavra é tanto isso, como a expressão de uma Beleza, um quadro dourado de musas, aquilo que nos encanta, como um assombro, sem que o saibamos explicar. A palavra é esse artefacto de composição e esse deslumbramento. 

Com Maria Gabriela Llansol a palavra é uma narrativa à descoberta do corpo e de como ele se desenha naquilo que ela chamou "cenas fulgor", por onde observamos as formas de um mistério, a força ser ser e o Belo. Palavras, como um oráculo que fascinam e nos interrogam. Palavras difíceis, para habitantes da noite, ou viajantes de estrelas invertidas. Palavras belas a procurar decifrar a visão e o que nela nos afasta uns dos outros, uma forma de incomunicabilidade, quase uma ferida que separa a ternura do orgulho.

Essa "história silenciosa", onde o amante das coisas se esqueceu de apresentar a contemplação da miragem, o desejo mais de uma epifania. Tudo isso, os bens da terra: "o conhecimento, a abundância, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver." (2)

(1; 2) - Maria Gabriela Llansol. (1988). LisboaLeipzig1. Lisboa: Rolim.

sábado, 20 de maio de 2017

Crescemos 20 centímetros, ..., mas encolhemos...

Isto de ser desmancha-prazeres não é propriamente muito agradável, mas lá terá de ser. A Pátria está mais uma vez a atravessar um espasmo nacionalista por causa da vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão. Isto é por surtos, agora vai haver 15 dias de celebrações, cheias de grandes frases, cheias de peito feito, por parte de quase toda a gente que nem sabia que Salvador Sobral existia. Como agora se diz, “as redes sociais fervem”, e, quando elas “fervem”, a comunicação social, que devia ser menos excitável, perde o equilíbrio. 

Subitamente tudo parece possível, o interesse pelo português sobe em flecha, o lirismo passa a receita universal, Portugal é o maior, e duas pessoas, os irmãos Sobral, passam do anonimato para heróis nacionais. É bom, é cómodo para toda a gente, mas, com a excepção dos irmãos e de quem os ajudou e apoiou, este sucesso tem a característica habitual do modo como nos “auto-estimamos” com o trabalho e a dedicação dos outros, ou seja, sem trabalho próprio, sem esforço — cai-nos no céu. É por isso que é politicamente útil e utilitário, porque civicamente barato e psicologicamente agradável.

Ninguém o disse melhor que o senhor Presidente da República, que afirmou que “a vitória na Eurovisão deu 'mais 20 centímetros' aos portugueses”. Sim, excelente, andamos todos com mais 20 centímetros, mas onde é que está o metro e meio que perdemos como nação há 20 anos para cá, com a perda de poderes do Parlamento português, com a assinatura de tratados como o Orçamental, com a subjugação a um modelo de crescimento medíocre em nome das “regras europeias”, com acordos como o Acordo Ortográfico, que fez proliferar as normas da ortografia do português, em vez de as unificar, ficando nós com a mais pobre, com os cortes no ensino da língua e da projecção da cultura, com a ênfase na diplomacia económica e o definhar das instituições como o Instituto Camões?

O mais grave de tudo é que os 20 centímetros que o Salvador Sobral trouxe são em grande parte mérito dele, e o metro e meio que perdemos é demérito nosso. Foi o resultado de uma política de dolo que a União Europeia usou, com destaque para ao Tratado de Lisboa, que tirou às escondidas e sem debate público poderes que ninguém conscientemente deu à União, em detrimento da soberania nacional, foi o resultado dos desastres de Sócrates que nos levaram ao resgate e da política para forçar eleições em 2011 do PSD, foi o resultado da nossa apatia cívica face ao que é verdadeiramente importante, em contraste com as excitações futebolísticas. Foi o resultado de um sistema político no qual a dimensão cultural, histórica e expressiva da língua e da sua ortografia foi deitada ao lixo, por uma espécie de engenharia diplomática que se revelou um desastre, ficando todos pior do que o que estavam.

Nós gostamos da vida fácil, anómica, civicamente alheia e, salvo raras excepções, não somos voluntários para quase nada, não temos causas a não ser as mediáticas nestes surtos, somos mais clubistas do que patrióticos, deixamos estragar o que de bom ainda temos, mostramos uma indiferença egoísta face ao trabalho dos outros, a quem atribuímos sempre más intenções, exibimos a nossa ignorância com cada vez com mais arrogância, possuímos a atitude da aldeia, punindo a iniciativa, porque há sempre alguma coisa que está mal, e depois vampirizamos, para alimentar a nossa “auto-estima”, o trabalho e o mérito alheio. Há razões sociais para ser assim, a mais importante é que somos muito mais pobres do que aquilo que pensamos que somos, e temos um caminho ainda longo até termos essa força cívica que faz as nações fortes. Se fosse assim, não “engolíamos” o que engolimos, por inércia, por preguiça, ou porque protestamos pouco e mal.

Eu não tenho muitas ilusões sobre o que ocorreu nos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Sei o papel que tinham estudantes que se descobriam proletários e como muitas organizações com nomes pomposos e revolucionários eram uma inexistência e, acima de tudo, nem eram “de trabalhadores”, nem “populares”, muito menos “proletárias”. Sei também do autoritarismo que percorria muitas ideias políticas, do enorme machismo e sexismo existente, das inúmeras ficções, teatros e enganos desses anos do final da década de 70. Mas estou neste momento a organizar mais de mil fotografias desses anos tiradas por militância e não pela arte da imagem, e que só em parte tinham intenção documental. E essas fotografias revelam um momento excepcional da vida portuguesa, menos político do que pensávamos na altura, mas mais social, altruísta e, à falta de melhor palavra, esperançoso. De facto, o passado é um país estrangeiro.

Numa das fotos, um operário da construção civil conserta o telhado de uma casa ocupada para uma associação popular. Percebe-se que sabe o que faz, não é um estudante trasvestido de operário. Veste pobremente, usa bóina e tem os sapatos certos para andar em cima de um telhado. Está a trabalhar de graça, talvez pela causa que iria dar nome à casa ocupada, talvez porque arranjou novos amigos e uma forma de companhia a que nunca tinha tido acesso, ou talvez porque sentia que o seu trabalho tinha uma dignidade diferente. Ou talvez por coisa nenhuma, mas estava. 
Noutra fotografia, uma mulher de bata, que se percebe ser igualmente pobre, talvez dona de casa, talvez operária, talvez trabalhando na limpeza, rega umas plantas envasadas em latas, também numa associação popular, daquelas que proliferaram nesses anos. Talvez ela apenas gostasse de flores e lhe custasse o desprezo a que, em nome da revolução, eram votadas, talvez já as regasse antes e não queria que morressem. Seja o que for. Estas faces e estes corpos teriam certamente as mais genuínas das emoções pela vitória de Salvador Sobral na Eurovisão. Mas não se ficavam por aqui, tinham algumas esperanças que nós não ousamos ter. E temo que os espasmos nacionalistas com as canções e com o futebol tenham ocupado algumas dessas esperanças, transformando-as em egoísmos.

Nunca me esqueci de um dos mais notáveis ensaios de E. P. Thompson sobre um livro de George Orwell, chamado The Road to Wigan Pier. Thompson refere a profunda empatia que Orwell tinha perante uma visão fugaz da tristeza e solidão de uma mulher num dos subúrbios operários do Norte de Inglaterra, apanhados pela Depressão e pelo desemprego. É para esse olhar e para o “movimento” da atitude de Orwell que me volto nestes dias como antídoto para a facilidade e para o facilitismo social, para as profundas perdas de dignidade e soberania, de liberdade e autonomia, que aceitamos todos os dias por preguiça mediatizada, por “auto-estima” de plástico. Tenho consciência de que há muitas contradições, ou sentidos contraditórios, neste artigo. Às vezes é assim.
José Pacheco Pereira, "Crescemos 20 centímetros com a vitória na Eurovisão, mas encolhemos metro e meio nos últimos anos", in Público, 20.05.17

domingo, 14 de maio de 2017

Leituras - Fantasmagorias

"Como é bela uma rua no Inverno! Ao mesmo tempo explícita e obscura. Aqui, é possível traçar vagamente avenidas direitas e simétricas feitas de portas e janelas; aqui, debaixo dos cendeeiros, flutuam ilhas de luz coada, por onde passam, rapidamente iluminados, homens e mulheres que, apesar de toda a sua miséria e desmazelo, transportam qualquer coisa de irreal, um ar de triunfo, como se tivessem fugido da vida, de modo que a vida, iludida por quem a despojou, erra sem eles. Mas, mesmo asssim, ainda estamos a deslizar suavemente pela superfície das coisas." (1)

Em diferentes latitudes, a cidade surgirá no século XX como uma grande metrópole, onde uma atmosfera definirá grandeza e misérias humanas, ruínas e sonho, imaginário do fantasmagórico. Virginia Woolf viu na Londres dos anos vinte do século XX, "um poema", "uma história" que se revela nos seus passeios pelas suas ruas e espaços. A cidade e Londres em particular foi para a autora de As Ondas uma personagem essencial da narrativa literária por ela criada nas primeiras décadas do século XX.

Já em Mrs. Dalloway Virginia Woolf nos revela essa deambulação pela cidade, o reconhecimento de ruas, a sua toponímia, a sua atmosfera, onde circulam personagens de diferentes tempos que se inscrevem como uma intimidade. A cidade como elemento formador de uma memória, onde circulam os espaços afectivos de diferentes pessoas, onde cada um se defronta com um mundo interior inacessível e um exterior, capaz  de construir uma evasão no tempo. 

A cidade integra-se num movimento social e cultural e faz das suas ruas, dos seus edifícios um construtor de vivências. Estas manifestam-se entre a multidão que habita um urbanismo explosivo de verticalidade, espaços concentrados de um efémero, por onde a fantasmagoria se ininue de um modo persistente. A atmosfera de fantasmagoria apreende-se na iluminação pública, ainda a criar atmosferas de imprecisão, de indefenível, ou dessa junção de real e visonário, um estado preparatório de um pensamento.

A cidade formula uma atmosfera, onde estruturas físicas paracem dotadas para uma certa forma de viagem que se realiza na descoberta de objectos e que eles próprios são indutores da ideia de evasão, mas também instrumentos de um registo como o lápis ou os livros de uma livraria antiga. Viagem em si por aquilo que ela desvenda, pela recuperação de um tempo que se perdeu e a sua integração no presente, no quotidiano que se vive. Viagem que edifica um pequeno momento de ternidade, quando essas relíquias se erguem para nós.

(1) Virgina Woolf. (2016). Fantasmagorias. Lisboa: Feitoria dos Livros.

domingo, 7 de maio de 2017

O País das aparências

A Democracia precisa de uma contínua forma de esclarecimento, de denúncia da mediocridade que esconde o pensamento ideológico feito da aparência com que alguns querem impor a sua realidade. Tempos houve em que se pensou que a informação era a ferramenta condutora de um esclarecimento da sociedade e nesse sentido um instrumento de transformação social e cultural. Bastava pois ter os meios que a função de cidadania seria incentivada. 

A edição do jornal Expresso de 06.05.17 e as declarações de Rui Moreira num evento social revela-nos a aparência com que a informação é dada nos circuitos de media, a aparência acrítica da realidade. Miguel Sousa Tavares numa linguagem dominada por imensa animosidade, para não lhe dar outro nome, faz aquilo em que os comentadores são hábeis, o seu portefólio de ideias, onde se adivinham palavras ouvidas noutros espaços. Às vezes superam-se. Foi o caso. As ideias surgiram num tom pouco amistoso sobre o que já sabemos. A Função Pública é formada por um monte de preguiçosos, com férias constantes, o investimento no emprego de precários um desperdício luxoso de recursos, a extrema esquerda e direita caminham para valores idênticos e aos mortos não é devido nenhum reconhecimento.

Todo o seu discurso é uma argumentação maniqueísta que não reconhece a diversidade conjuntural, nem o diferente papel que diferentes grupos podem ter na sociedade. O texto não é um comentário sobre a realidade, é uma opção ideológica. É um direito seu, embora nada explique sobre as diferentes arestas de uma sociedade. O jornal Público também já tem esta vertente em que se adivinham as palavras sábias de comentadores. O Expresso parece querer lá chegar. Sendo legítimo nada tem a ver com informação.

No caderno principal do conhecido semanário, na penúltima página, um think thank despreza a legítima vontade dos cidadãos querem proteger a costa portuguesa, com um artigo de linguagem arrogante, cujo título denuncia uma vez mais uma ideia maniqueísta sobre os outros, Com o título, "... é a economia, estúpido!", é um panfleto pelo comérico do petróleo e do gaz que possa existir na costa portuguesa e revela como os direitos dos cidadãos devem estar hipotecados aos interesses económicos de grupos económicos. Esta será mais uma história de sucesso, dos "espertos", nessa longa epopeia da história da energia que na EDP tem servido a epifania nacional.

Na luta essencial para revelar as aparências do discurso, Rui Moreira deu um contributo de gigante. Afirmações de excepcional cidadania, "de que poderemos voltar a ter uma ditadura", ou "que o 28 de Maio de 1926 foi aceite por todo o povo", revela-nos um discurso feito de um desconhecimento da história e a sua utilização em contextos que só se podem relacionar com uma ideia ideológica.

A candidatura do autarca há quatro anos à Câmara Municipal do Porto foi uma lufada de ar fresco e quase nos fez acreditar que a cidadania por ser cumprida na gestão pública, como uma possibilidade das pessoas. A sua candidatura fez-nos  ter a esperança que cidadãos independentes podiam chegar sem lógicas partidárias a lugares importantes da gestão da sociedade. Rui Moreira esqueceu-se de várias coisas essenciais.

Esqueceu-se que é o Porto que lhe dá dimensão, que é ele que lhe permite construir uma ideia aberta e participada da cidade. Acabou, infelizemente, por cair naquilo que os políticos lusos são mestres, a utilização do poder para a sua própria imagem, o eu que supera qualquer conjunto. Estes três casos dão conta dessa ideia de "iluminação" sobre os outros que nada vêem. A independência de pensamento é tão rara em Portugal, como a água no deserto. Não é por acaso que vivemos na amnésia, a incapaz forma de reflectir sobre a realidade. Todos os dias os media são este show de cidadania. História à sombra da ideologia, o particular como visão do geral, a arrogante esquecimento pelas pessoas, um coração sem respiração.

Imagem - Copyright - Milene Seita

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Leituras - Gente Independente

 “(…) estou de acordo com o nosso rei das montanhas em que se olharmos para os ideais das guerras com um olho e para todos aqueles homens e mulheres que são destituídos de vida e de saúde com o outro, então não é de admirar que às vezes nos visite o pensamento de que porventura seria melhor que os homens se esforçassem mais por poupar vidas humanas em lugar de ideais. Porque se os ideais não visam fomentar a vida humana aqui na Terra, mas matar homens aos milhares, ora então podemos perguntar-nos se neste caso não seria mais plausível ficarmos completamente destituídos de ideais, embora uma vida assim fosse naturalmente vazia. Porquê, se os ideais não são a vida e a vida não são os ideais? Logo, o que são os ideais? E o que é a vida?

O Independent considera-o o livro do século e mesmo sabendo que as generalizações são muito redutoras e feitas por vezes de apreciações  precipitadas, neste caso é uma classificação que se compreende pela dimensão da escrita que encontramos, no livro de Halldór Laxness, Gente Independente. O livro publicado em 1935 e que permitiu a Lalldór Laxness o Nobel da Literatura em 1955 é uma epopeia que embora partindo de uma situação particular, a Islândia do início do século XX e a sua história torna-se uma narrativa universal por aquilo que envolve a sua construção.
Gente Independente tem em Bjartur uma criação fantástica que o coloca ao lado de um leque de personagens essenciais da Literatura. Bjartur tem um sonho, ser um homem independente, pois para ele, o maior desejo do homem é a sua liberdade. A liberdade carece de independência e assim a sua maior conquista na vida é construir essa independência. Ao lado de Bjartur existem um conjunto de personagens que nos dão um retrato da Islândia e uma forma de vida muito particular.

Gente Independente é uma composição humana à procura de um sentido humano da independência numa terra de condições geográficas muito difíceis, mas também de conquista de um modo de felicidade na terra dos homens. As análises da vida social são integradas num esforço humano de superação e numa descrição de paisagens naturais de grande beleza, de grande afirmação do mundo natural.
Gente Independente é um livro monumental, pela dimensão,  pela temática, pela interrogação ao mundo social, pela dureza de muitas das opções feitas, das vidas vividas, mas é também um livro especialmente terno. Gente Independente consegue ser comovente na história de um homem, de uma natureza irónica fascinante, uma pronunciação de verdadeira liberdade, o pensamento criador de uma acção, mas também revoltante por aquilo que nos faz viver.

A leitura do livro não é fácil pois a dimensão dos parágrafos e as tensões propostas na luta das personagens implicam muito esforço. É um grande livro que nos faz emergir numa atmosfera que em muitas circunstâncias queremos pertencer, sobretudo estar junto de Bjartur e da sua luta estóica, indómita pela conquista de um ideal a que tenta juntar um sentido de compaixão e de amor pela família. 

A luta de Bjartur é a tentativa de construir uma vida livre e digna. O final do livro acaba por ser uma decepção, pois após a conquista da sua independência, a formulação de algum conforto retira-lhe a liberdade. Fica a esperança sempre a reconstruir as perdas e o que sobra dela. Um livro mágico e de uma beleza estonteante, no sentido mais puro que a Literatura pode ser. Gente Independente acaba por ser uma metáfora real sobre a Islândia, o gelo e o fogo. E nesse sentido Bjartur é a sua melhor forma de a compreender, o homem e a natureza, o social e a liberdade.