quarta-feira, 15 de março de 2017

Na memória de Raul Brandão (II)

A impressão é de frescura e calma, de névoas misturadas de oiro. Esta paisagem molhada e verde é vaga como um sonho: entreabre-se , fecha-se, sorri e adormece... Um silêncio enorme (todos os ruídos são abafados pela névoa), uma amplidão de ervas gotejando, uma luz serena e toldada. (...)

Por um rasgão vê-se o mar espelhado onde a luz esbranquiçada das nuvens se reflecte, e lá no fundo a Ribeira de Barqueiros com um biombo de montes muito verdes. Todos os tons do verde estão aqui representados, cheios de viço e frescura - o verde-azul e derretido nos fundos, o ver-escuro dos lagos de inhames, o verde macio das relvas, o verde-negro das faias, apagados e fundidos no orvalho. (...)

Sempre a mesma humidade e a mesma cor... E este verde sossegado insinua-se pouco a pouco e pacifica. Fica-nos na retina a cor verde e nos ouvidos a flauta afastada dos melros que assobiam sem interrupção no arvoredo formando biombo aos campos de milho. Esta linda estrada estaca de repente diante da falésia e em frente da baiazinha de S. Pedro. Espero o pôr do sol doirado por trás das nuvens cinzentas, espero a irrealidade do crepúsculo nesta luz sempre cheia de surpresas.

A costa para o nascente desdobra-se em cinzento, em roxo e negro no primeiro plano, com uma grande nuvem cor de chumbo a desfazer-se-lhe em cima e um rasgão de céu mais alto e claro, de planície etérea cor-de-rosa. Da névoa esfarrapada sai um clarão de fogo - riscos de oiro atravessam a poeira incendiando tudo em explosão. Por baixo a falésia alta derruba-se sobre o mar, com filamentos verdes derretidos nas águas. No segundo plano o azul mistura-se ao roxo e ao negro requeimado de grandes penedos. E no fundo anda pó verde do mar entranhado no pó roxo que dilui tudo na mesma tonalidade - as águas, o céu, as rochas aguçadas e dramáticas.

Mais um momento e o drama chega ao auge: um crepúsculo em que a gente vê as cores despenharem-se num abismo uma atrás da outra - o azul, o roxo, o lilás, enquanto o horizonte se incendeia. Tudo isto, diante dos meus olhos deslumbrados, escurece, torna-se violeta, afoga-se em névoa, morre num estertor violeta e cinzento. E, por trás dos montes já negros, levanta-se, aumenta e nunca mais cessa a fumarada prodigiosa das nuvens...

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 58 e 59; 
Imagem -  Ilhéu de Monchique, a oeste da Ilha das Flores. Açores; © - Paulo Azevedo.

Sem comentários:

Enviar um comentário