sexta-feira, 10 de março de 2017

Leituras - O capitão saiu para almoçar ...

"somos feitos de papel (...). É preciso sentir mais, pensar menos" (1).

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio reúne uma selecção de registos em forma de diário que  Charles Bukowics escreveu entre 1991 e 1993. Nome muitas vezes confundido com os poetas da Beat Generation, Charles Bukowics é um dos grandes poetas do século XX, pairando sobre ele a dimensão de um mito que sua vida de vagabundo, de uma marginalidade vivida à margem da sociedade americana durante décadas construiu.

Escritor que fez de uma experiência de vida, o material da sua escrita, dando voz a pessoas que viviam na margem da sociedade, de certo modo os despossuídos da América, entre as décadas de quarenta e setenta do século XX.  A poesia de Bukowics leva-nos pelas palavras que retratam a alienação, o isolamento e a fragilidade da vida um mundo humano dominado pela violência. Escrita nascida de uma vontade de se exprimir no mais livre da sua experiência, alimentada por palavras a arder, a sair de uma tela  e ainda assim a narrar uma arte, uma graça que permita ao escritor desenhá-la com o "andar de elegância de um tigre". 

Palavras nascidas do perigo, do jogo, da fome. Palavras nascidas de uma vida alimentada de múltiplos trabalhos, apenas para se levantar, como uma arte que permita fazer vibrar as palavras e com elas incendiar o que pode ser visto. "The dirty old man", como se intitulou deixou neste seu último testemunho escrito, uma herança literária e filosófica alimentada já não tanto no risco, mas do que de subtil, de nuances e sombras fazem preencher a vida. 

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio dá-nos uma conversa de Bukowics connosco e essa conversação é muito interessante porque ele a faz de acontecimentos rotineiros, peças de escrita saborosa, uma cumplicidade difícil de encontrar. A linguagem é crua, com poucas convenções porque esse é o traço de Bukowics, sempre à procura da chama, de algo que permita uma escrita que faz descer o mundo até cada um de nós. Os recursos do escritor, a sua escrita, a música, os animais, a humanidade observada e uma rotina de esquecimento que entrega o mais visível  a miragens, a vida pouco honrada em si própria. 

Alternando entre a crítica, o sarcasmo e a ironia, O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio pode ser a porta de entrada para o universo de Bukowics aos que ainda não mergulharam em palavras à procura do fogo capaz de iluminar "esse palhaço na escuridão" (pág. 23) e, construir o melhor que o mundo tem, "continuar sempre a avançar, à procura de coisas, a formar frases, a divertir-se" (pág. 96). E descobrir um escritor essencial da cultura contemporânea, numa escrita feita de uma combustão interior. Descobrir que no fim a morte tem a mesma gravidade do que o desabrochar de uma flor. É o tempo a renascer, a vida a reconstruir-se. 

(1) - Charles Bukowics. (2016). O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio. Lisboa: Alfaguara, página 73.

Sem comentários:

Enviar um comentário