segunda-feira, 27 de março de 2017

Leituras - A Senhora dos Açores

" (...) agora, que fazia sol, vi uma paisagem de rara beleza, pareceia uma terra de fogo que por brincadeira tinham posto a flutuar no oceano. " (1) 

As ilhas ocidentais não são apenas um território de diferentes formas espalhadas no mar aberto do Atlântico. As ilhas ocidentais  não são apenas promontórios, dos mais belos vistos sobre esse mar que se confunde com o céu.  Nem são só o momento inicial, a natureza fundida pelos elementos em cores vivas e deslumbrantes. Não são apenas um quadro de muros negros, onde flores e prados se mudam de azul e de sopro do vento arrastado por nuvens em circulação. ilhas ocidentais  são tudo isso e ainda mais do que isso.

Elas são um território humano habitado por mitos e fantasmas, expressão de histórias vividas entre a pobreza e a solidão durante muitos séculos. Elas são ainda um património de sentimento antigos, uma memória, a construção de um imaginário entre o silêncio e essa natureza que determinou a vida.

A senhora dos Açores é a leitura ficcionada do encontro de uma cidadã estrangeira com um lugar, os residentes e os que procuraram na Califórnia a superação da pobreza, o mergulho numa terra que vive numa dimensão intemporal conciliando o mais deslumbrante com as mágoas da vida.

 A senhora dos Açores é a viagem e o conhecimento de uma ilha, o Pico, as formas de vida e todas as histórias dos que saíram dos espaços de bruma e com o seu património foram descobrir outras formas de registo humano. A emigração e o que ela transportou de açoriano e o que ela transformou nos que ousaram essa viagem. Escrito por uma jornalista italiana, Romana Petri, dá-nos em A senhora dos Açores, um conjunto de histórias antigas, a magia de um lugar e o sentido de isolamento que muitas vidas colhem e o que com ele fazem.

A senhora dos Açores obteve o Prémio Grinzane Cavour e é um pequeno livro sobre um imensidão humana e natural, a Ilha do Pico. Entre os escombros das partidas, as línguas dos países da emigração sobre algo essencial, a vida. Neste pequeno livro encontramos o rosto belo desses olhos de azul que enchem os Açorianos. Nele percebe-se melhor essa felicidade com lágrimas que constrói muito dos que nasceram nas Ilhas Ocidentais. Se a natureza instalou um património do princípio do mundo, a vida na sua viagem de memórias e de reconstruções construiu um material de grandeza muito substantiva. A senhora dos Açores é sem dúvida um pequeno grande livro sobre os Açores e em particular sobre a Ilha do Pico.

terça-feira, 21 de março de 2017

Leituras - A desumanização (II)

Foram-me dizer que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou a  chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.
     Éramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. (...)
     E eu acreditei candidamente que, de verdade, a plantaram para que germinasse de novo. Poderia ser que brotasse dali uma árvore rara para o nosso canto abandonado nos fiordes. Podia ser que desse flor. Que desse fruto. (...)
     Achei que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser ao acaso. Pensei que a morte era feita ao acaso. (...)
     Nos meus sonhos imaginava jardins de crianças. As árvores baixas dos corpos, falando, brincando com os braços e os pássaros pousando entre as folhas. Os braços deitavam folhas e seguravam ninhos nas mãos e as crianças eram sempre pequenas, animadas de ingenuidade, gratas pela vida sem saberem outra coisa que não a vida. E sonhava que as pessoas japonesas vinham ao jardim contemplar, e deitavam água de regadores coloridos que lavavam os pés-raízes das crianças-bonsai. 



Chamávamos-lhe deus ou Islândia sem ter como atribuir a cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava proibido à pequenez humana. Qualquer nome não passava de uma blasfémia, como qualquer ideia que quiséssemos guardar segura acerca da grandeza infinita de deus, da Islândia ou da morte. Somos imprudentes ao arriscar conversar acerca destas coisas, confessava eu. Descobrir o nome e o significado de deus não compete a ninguém. Deve dar-nos medo a necessidade de o entender. Deve dar-nos medo a necessidade de entender deus. Ele é o desconhecido, se por ventura se der a conhecer então é uma falsidade. (...)
    O meu pai também dizia que a Islândia era deus e era a beleza de deus. (...) Talvez não entendamos o que é belo neste preciso momento. Podemos estar absolutamente enganados acerca de tudo quanto gostamos.

Valter Hugo Mãe. (2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 11, 37 e 41.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Leituras - Mulher de Porto Pim

"(...) as baleias, que mais do que animais parecem metáforas, e também os naufrágios, que na sua acepção de actos falhados e milogros parecem igualmente metafóricos" (1).

Mulher de Porto Pim e outras histórias é um livro reeditado em 2016 com a chancela da D. Quixote e com uma capa desenhada por Rui Garrido que nos traz um livro maravilhoso sobre "as ilhas ocidentais". Livro de 1982,  classificado pela World Literatura Today, como "uma ode aos Açores", é um objecto de grande valor cultural, que tenta trazer a paisagem, as pessoas, o mistério, o sonho, as histórias das "ilhas ocidentais", de uma forma concisa, breve e fascinante.  Mulher de Porto Pim e outras histórias é uma narrativa poética, quase um livro de viagens sobre um arquipélago atlântico, um relato e uma pesquisa de informação sobre as ilhas, as baleias, os naufrágios.

Dividido essencialmente em duas partes: I: Naufrágios, destroços, passagens, lonjuras e II. De baleias e baleeiros tem ainda um prólogo de abertura e um Apêndice, com uma nota final, um mapa e alguns livros sobre esta temática atlântica. Mulher de Porto Pim e outras histórias tem o grande mérito que caracteriza Antonio Tabucchi de misturar o real e o sonho tentando encontrar o que se revela por detrás das imagens, das palavras, dos gestos, dando aqui em pouco mais de cem páginas um quadro do sentido diferente e maravilhoso que são os Açores.

Mulher de Porto Pim e outras histórias integra horizontes de ficção com suporte de real como é o caso do texto (lindo) sobre Antero de Quental, ou misturando histórias ouvidas com o que a sua imaginação e as suas leituras permitiram construir. 
Um texto final de rara beleza, "uma baleia vê os homens" dá-nos essa ideia criada por Carlos Drummond de Andrade, a visão que os animais têm de nós. Observação que é uma metáfora sobre a forma como vivemos e usamos o espaço que habitamos. Mulher de Porto Pim e outras histórias é um livro fascinante de um grande escritor sobre um território habitado por "deuses do espírito, do sentimento e da paixão" (2).

sexta-feira, 17 de março de 2017

A arte do instante (V)

O mundo do silêncio que se desenha num tempo suspenso, como representação do instante, a individualidade de gestos minuciosos, uma arte da contemplação.
Tudo isso foi a pintura holandesa do século XVII, numa alquimia nascida do quadro e construída na representação de uma luz de natureza encantatória. Pintura também de universos femininos, num registo de memória.

A pintura holandesa do século XVII se fosse apenas um registo de memórias já era uma caso assinalável, pois reúne uma alegria pela vida que torna a pintura registada noutros impérios, com outra influência religiosa, uma representação cultural de transgressão. Os quadros de Vermeer, de Emanuel De Witte, ou de Pieter de Hoch conduzem-nos a uma característica essencial da pintura holandesa do século XVII, uma representação do feminino.

As cenas representadas, o seu fulgor em transfigurar o silêncio que acompanha pessoas e coisas centra-se no feminino. Existem poucos quadros em Vermeer em que se dispense o universo feminino e os espaços dessa intimidade, como uma admirável nostalgia do instante. Nesta representação cantrada no feminino, ou nos seus espaços, ou objectos, os homens têm um papel secundário. Estes apresentam-se como convidados de uma história, ou tão só elementos para criar um cenário, para compor uma narrativa do instante. O elemento feminino está definido no centro do quadro e toda a acção carece da sua presença.

A centralidade da presença feminina nos quadros da pintura holandesa do século XVII revela-nos a importância das descrições e dos objectos representados.  A leitura de cartas é uma das cenas mais comuns representadas. Não se trata de um efeito decorativo, mas da afirmação de um conteúdo com relação ao contexto cultural e social. A carta era um instrumento de relação social, limitada apenas pelas redes de comunicação. O império comercial holandês estendeu-se aos confins da Ásia e estima-se que entre 1595 e 1795 saíram um milhão de pessoas dos chamados Países Baixos. As cartas eram assim muito frequentes neste universo humano.

É desse mundo exterior que virão os sinais da aventura marítima, os quadros, os mapas, os instrumentos musicais, os vasos chineses, tudo isso vem de um exterior que irá alimentar os espaços interiores, na construção de um gosto e de uma expressão estética. Os quadros da pintura holandesa do século XVII são a representação de uma alegria quotidiana, a materialização poética de espaços femininos, uma espécie de "superfície do qual os homens traçaram rotas, como linhas sobre o globo" (1). 

A harmonia dos espaços habitados, construídos por uma dedicação feminina e um conforto possível por uma burguesia comercial são o fundo desta pintura. E são também um sinal da matriz pragmática e transcendente do calvinismo, como influenciadora de um fazer humano mais aberto, espelho de um refinamento civilizacional.

(1) -  Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017; Imagem - Vermeer, The Lacemaker, 1669 - 1670, Museu do Louvre, Paris.

Na memória de Raul Brandão (IV)

O mar está espelhado e o céu tão espelhado como o mar, com brancuras de algodão, e nuvens meio adormecidas, orladas de cinzento. Tudo tão branco e parado que parece que o tempo suspendeu a sua marcha. Olho o mar, com rastejados de caracol e pedaços brancos iluminados por dentro. Ao longe vai aparecendo e acompanha-me sempre outra ilha, São Jorge, estiraçada a todo o comprimento. Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente - o Corvo, as Flores, Faial, o Pico, o Pico, São Jorge, São Jorge, a Terceira e a Graciosa...

Cada vez me seduz mais pela estrada fora um campo de milho sachado e arrendado com as hastes direitas e verdes e o quadrinho vulgar das hortas, pela cor de satisfação dos legumes, pelo fio de água reluzindo em conversa com as couves, como se sentisse o benefício que lhes presta: a água parece inteligente e piedosa, e a vinha e o souto, neste grande deserto, entre a pedra devorada, representam o triunfo do homem sobre as forças brutas da natureza. (...)

Sentei-me num quintalório com japoneiras envernizadas de fresco e do tamanho de árvores, num terraço muito alto sobre o mar, e sobre o mundo. Aí fiquei horas esquecidas, envolto em poeira azul, absorto no mar cheio de reflexos de oiro, em São Jorge estendido ao sol, doirado e longínquo, cheio de crateras inofensivas e roxas, abrindo as bocas diante de mim, com um pouco de azul lá dentro. (...)

Produto de um parto monstruoso, a ilha foi devorada até ao ponto de fundir. É a dor. É a dor do mundo exposta a nossos olhos, imobilizada diante de nossos olhos - a dor descarnada e solitária, muda e trágica, sem um véu, sem um farrapo, sem um grito. Só dor. (...)

Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido. Tudo se despenha em catadupas de pó negro, ou fundido dum só jacto nas pareces lisas e azuladas, negras com arabescos mais escuros que parecem caracteres indecifráveis - petrificadas em cores mais ricas, dum negro cor de sangue, fundidas e entranhando-se umas nas outras até chegarem ao fundo cinzento. Um abismo - um tropel - um campo de destroços. E sobre o caos cinzento.
E isto não nos larga. Chega a impor-se a nossos olhos e fascina-nos a ossatura despida de toda a carne, não pela impressão de monstruoso ou de atormentado, mas pela beleza intelectual, pela beleza superior e grave que é a das almas.

É aqui que a luz dos Açores atinge talvez a perfeição. Nada que a distraia - só mesmo o tom no vasto quadro feito com a mesma cor, variada até ao infinito em nuances delicadas. Sobre o cinzento do mistério paira o cinzento absorto do céu - sobre a pedraria escorre o cinzento das nuvens. Ao longe o paredão imenso realça a severidade do panorama excepcional. (...)
O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atração. É mais que uma ilha - é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo - é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.
Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim, negro, negro e dramático, roído de cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia...

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 95, 107 e 110; Imagens - Ilha do Pico. Açores; Copyright - Andres Rueda

quinta-feira, 16 de março de 2017

A arte do instante (IV)

O tempo suspenso, o instante representado, a individualidade nos gestos, um momento de contemplação e a pintura minuciosa. Uma pintura que alguns têm chamado pintura de género e que é uma representação descritiva de algo que se oferece no tempo do instante, mas também a nós. O contorno destas figuras, a materialidade absorvida na luz dá-nos um modelo interior que é uma representação particular, mas também uma alusão e pessoas e de espaços de um tempo.
Figuras que são uma evocação, mas também definem uma invisibilidade, pois elas narram emoções vividas no silêncio. Um silêncio que transcende a tela, e que compõe toda a pintura para um exercício do olhar. Especialmente com Vermeer, nota-se uma linha que conduz o quadro a quem olha, um esforço para que cada um de nós entre nesses instantes, rompendo o tempo suspenso em muitos outros.

Os dois primeiros quadros de Vermeer, Diana e as suas companheiras, de 1654 e O Cristo com Marta e Maria, de 1655 são dois quadros de abertura da sua obra que não serão representativos no conjunto da sua produção artística. Os dois dois quadros apresentam um outro Vermeer, não só pelas temáticas, mas também pelas cores, dominadas pelos tons quentes. Essa pintura não daria a relevância que a restante da sua obra lhe daria. Na pintura religiosa ou mitológica o seu nível de representação parece ficar aquém dos mestres desse século, Rembrandt, Velásquez ou Rubens. Vermeer descobriu um modo de superar essa dimensão dos mestres.

Vermeer tornou-se um pintor importante numa representação diferente desses mestres e que ele ensaiou, desde o seu 3º quadro, A Alcoviteira, de 1656. É a respiração da vida, os quadros de uma vida quotidiana sem representação teatral, "esse silêncio antes do silêncio" (1) que lhe vai permitir deixar o seu nome na história da pintura ocidental. Na composição humana dos seus quadros, o espaço encolhe, não tem as dimensões simbólicas da iconografia mitológica, aparecendo figuras, objetos que obtêm uma dimensão de alquimia.
Alquimia que se constrói de um conjunto de intuições representadas, de uma dimensão concisa e onde emerge todo o enigma do privado, do instante, da vida em si mesma. Vermeer dá-nos na sua pintura uma nostalgia e uma alegria, essa ideia de tempo que poderíamos conciliar na expressão, "os belos dias". Marcel Proust diria da pintura de Vermeer que ela era o que ele ambicionava para o seu À procura do tempo perdido, a descrição dos paraísos que se volatilizam na claridade do dia. A pintura de Vermeer é a procura pelo registo de uma medição, uma pulsão de vida que emerge dessa claridade.

Dessa claridade, onde nascem as histórias, as nossas, ausentes da santidade dos deuses do Olimpo e que se enebria da vida. Dela, onde descobrimos uma participação numa descoberta, a dos "bens do mundo" por nós construído. O grande alcance da pintura de Vermeer é ter feito dos seus quadros, o registo de uma Holanda do século XVII e lhe ter dotado de uma transcendência, a que repousa nos instantes e nas coisas nomeadas. A transfiguração dos episódios mais banais em algo supremo dá-nos o valor poético e nostálgico de um fazer humano, onde queremos entrar com o nosso olhar. 

(1) -  Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017.
Imagem - Vermeer, O soldado e a jovem risonha, 1658, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

Colóquio Internacional - Raul Brandão

A Universidade Católica, no Porto, organiza entre 15 e 16 de março um colóquio internacional em homenagem ao escritor Raul Brandão. Dois mil se dezassete é o ano em que passam cento e cinquenta anos da publuicação do livros "Húmus". Neste ano igualmente comemora-se o centenário do nascimento do escritor portuense. Este colóquio é organizado pela Cátedra Poesia e Transcendência e tem como ponto de partida, a apresnetação do livro de Maria João Reynaud, "'Húmus', livro de um século". O colóquio reune um conjunto de estudiosos que falarão sobre as temáticas sociais e culturais que a escrita de Raul Brandão contemplou.

Raul Brandão abordou na sua obra  a questão da pobreza e a sua relação com as questões de sociedade. O autobiografismo e o confessionalismo são modos de representar uma época e nesse sentido, a sua obra apresenta-se como uma ferramenta de conhecimento de um determinado tempo histórico e espaço social. Os itinerários espirituais e a temática do mar, no sentido da construção do natural e do sentido humano da vida são temáticas presentes na sua obra, como por exemplo em, O diário de K. Maurício e em As ilhas desconhecidas.

Nas suas obras, O Palhaço e o Pobre e em Húmus a discussão da humanidade, do seu sentido face a Deus dão-nos formas de abordar as epifanias que uma religião criou e o modo como os homens a podem viver. Há em Raul Brandão uma evidente modernidade e a eclosão do 1º modernismo tirou-lhe alguma visibilidade. Hoje, é um autor ainda muito desconhecido e, sobretudo pouco divulgado. A vinte e quatro de março, a Quetzal lança as Memórias, que é um evidente exemplo da literatura de memórias. Em abril a editora Ponto de Fuga, editará O pobre de pedir, livro há muito tempo esgotado. No mês de maio será editado, A vida e o sonho - Inéditos, antologia e guia de leitura, onde se dá conta da componente literária e jornalística da sua obra.

Na memória de Raul Brandão (III)

A outra coisa que exerce uma verdadeira fascinação é o Pico - tão longe que a luz o trespassa, tão perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade, parece um efeito mágico de luz, um fantasma posto aí de propósito para nos iludir e mais nada.  Toma todas as cores: agora está violeta logo está rubro. Tarde, e a Lua enorme a nascer por trás daquele paredão imenso que chega ao céu. 
É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge de nuvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de Inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me de vida. 

O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas [hortenses] devia ter uma estátua na ilha. Em nenhum outro lugar elas prosperam melhor: querem luz velada, humidade e calor - estão no seu meio. O seu azul é o azul esmaltado dos Açores nos dias límpidos. Nos dias turvos substituem a cor do céu: são o azul desta terra enevoada e uma das suas maiores belezas. Imaginem o cinzento que se derrete e alastra e torna o céu mais escuro, a atmosfera mais húmida, e sob isto ao azul cada vez mais azul, as molhadas de flores duma cor cada vez mais intensa e mais fresca. 

A volta na luz da tarde é um assombro. Vejo o Salão e Pedro Miguel, todos azuis de hidrângeas; sigo extasiado pela estrada azul, com o Pico ao fundo e S. Jorge à esquerda formando uma enorme baía. É o horizonte de Nápoles mais escuro, a esta hora iluminado por uma luz rica de efeitos. Em baixo colinas, sempre colinas - não como as montanhas solenes das Flores em picos aguçados pelo raio, mas arredondados e mansos. Borbotões de azul despenham-se por todos os lados. O faial adormece em azul sob o céu de cinzento e com o Pico todo violeta ao lado. 

À noite não posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas. Nasceu, subiu a Lua numa paz extraordinária, apagando o brilho dos diamantes, mas entre os últimos reflexos vibram os fios das vagas quebrando na costa e desaparecendo logo no boqueirão todo negro. Mais luar e o silêncio que espera de nós qualquer comunicação sobrenatural. Olho. todas as hortenses se puseram brancas, dum branco perfeito, todas as hortenses não desfitam  os olhos de mim, quietas e brancas, imóveis e brancas.1

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 81, 82, 83 e 90.
Imagens - Na estrada da Horta para Flamengos. Ilha da Horta. Açores; Copyright - Júlio Machado

quarta-feira, 15 de março de 2017

A arte do instante (III)

O enigma de um olhar, o tempo suspenso e um instante em representação, algumas das vertentes com que a História de Arte costuma designar o século de ouro da pintura holandesa. Dessa iconografia do quotidiano, de um amor vivo nas tarefas diárias, de um espaço de intimidade, chegamos também às figuras solitárias dessa pintura.

Nesta pintura as figuras, as pessoas estão sós e definem-se pelas suas tarefas, pelas suas atitudes nos espaços e apenas por si. Não existe necessidade de cada uma das figuras se preencher num outro. Nesta pintura cada figura constrói-se inteiramente pelo que realiza sozinha, com a sua postura física. Nela vemos as emoções desvendadas em pequenos gestos, os cabelos em caracóis pendentes sobre o peito, as linhas do vestuário envolvendo corpos, definindo atmosferas, ou a guitarra que em precisos movimentos parece evidenciar um som. Como nos surpreendemos, com a elegância das formas de um corpo que se expande num espelho, ou os gestos de uma pequena boca semi-aberta, ou um sorriso que se estende num cumprimento.

A pintura holandesa do século XVII é feita da apresentação de figuras, de fisionomias que adivinham formas de enredos familiares e sociais. A carta que se escreve, o olhar fixo num sentimento, um pequeno drama que se apresenta, como uma saudade, ou uma inquietação. E depois, sobretudo com Vermeer é a luz que nos chama, que nos encanta, como forma de comunicação  a uma representação.

Vermeer pintou um conjunto de quadros onde notamos nenhum artificialismo da luz. Esta apresenta-se precisa e muito idêntica como a vemos na natureza, tal "como um físico escrupuloso a poderia desejar" (1). Há uma apresentação de raios de luz que se expandem de uma ponta à outra do quadro, pois a luz parece emergir da própria pintura. O espetador surge neste olhar como uma testemunha de um momento, de uma  vontade e de um tempo quotidiano.

(1) Theóphile Thoré Alias W. Bürger, "Van der Meer Delft", in Gazette des Beaux Artes, XXI, 1866.
imagem - Detalhe de A Carta, 1670, National Gallery of Ireland, Dublin.

Na memória de Raul Brandão (II)

A impressão é de frescura e calma, de névoas misturadas de oiro. Esta paisagem molhada e verde é vaga como um sonho: entreabre-se , fecha-se, sorri e adormece... Um silêncio enorme (todos os ruídos são abafados pela névoa), uma amplidão de ervas gotejando, uma luz serena e toldada. (...)

Por um rasgão vê-se o mar espelhado onde a luz esbranquiçada das nuvens se reflecte, e lá no fundo a Ribeira de Barqueiros com um biombo de montes muito verdes. Todos os tons do verde estão aqui representados, cheios de viço e frescura - o verde-azul e derretido nos fundos, o ver-escuro dos lagos de inhames, o verde macio das relvas, o verde-negro das faias, apagados e fundidos no orvalho. (...)

Sempre a mesma humidade e a mesma cor... E este verde sossegado insinua-se pouco a pouco e pacifica. Fica-nos na retina a cor verde e nos ouvidos a flauta afastada dos melros que assobiam sem interrupção no arvoredo formando biombo aos campos de milho. Esta linda estrada estaca de repente diante da falésia e em frente da baiazinha de S. Pedro. Espero o pôr do sol doirado por trás das nuvens cinzentas, espero a irrealidade do crepúsculo nesta luz sempre cheia de surpresas.

A costa para o nascente desdobra-se em cinzento, em roxo e negro no primeiro plano, com uma grande nuvem cor de chumbo a desfazer-se-lhe em cima e um rasgão de céu mais alto e claro, de planície etérea cor-de-rosa. Da névoa esfarrapada sai um clarão de fogo - riscos de oiro atravessam a poeira incendiando tudo em explosão. Por baixo a falésia alta derruba-se sobre o mar, com filamentos verdes derretidos nas águas. No segundo plano o azul mistura-se ao roxo e ao negro requeimado de grandes penedos. E no fundo anda pó verde do mar entranhado no pó roxo que dilui tudo na mesma tonalidade - as águas, o céu, as rochas aguçadas e dramáticas.

Mais um momento e o drama chega ao auge: um crepúsculo em que a gente vê as cores despenharem-se num abismo uma atrás da outra - o azul, o roxo, o lilás, enquanto o horizonte se incendeia. Tudo isto, diante dos meus olhos deslumbrados, escurece, torna-se violeta, afoga-se em névoa, morre num estertor violeta e cinzento. E, por trás dos montes já negros, levanta-se, aumenta e nunca mais cessa a fumarada prodigiosa das nuvens...

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 58 e 59; 
Imagem -  Ilhéu de Monchique, a oeste da Ilha das Flores. Açores; © - Paulo Azevedo.

terça-feira, 14 de março de 2017

A arte do instante (II)

A pintura holandesa do século XVII concentra em si um enigma que nos chama, como um cenário, uma luz que se suspende num instante. É uma pintura que nos apela, que nos interpela para observar um momento, mas também para deixar nela o nosso próprio olhar. É uma pintura como uma revelação, onde entramos como estrangeiros e onde ficamos a admirar segredos quotidianos. Segredos de uma felicidade, enredos que suspeitamos nascer de uma representação que tenta combinar atmosferas de intimidade. 

Nem sempre olhámos para esta arte do instante com a devida importância, na proporção que ela merece. Vimos durante muito tempo o domínio de uma arte pela consistência técnica, pois o objeto da representação parecia banal, ou pouco interessante. Afinal eram apenas objetos do quotidiano representados em ambientes caseiros. A vida pode, no entanto, dar-nos, em pequenos instantes, níveis de significação interior muito consideráveis.

As atividades humanas, as suas expressões de vontade, de desejo, de realização das tarefas podem-nos dar evidências de sentido, traços de psicologia de uma sociedade. Essa representação da vida humana numa cena pode constituir uma identificação, a definição de uma identidade, nessa surpresa de instantes. Os valores iconoclastas do calvinismo retiraram muitas das imagens tradicionais da mitologia e isso faz-nos compreender como a luz suspensa, aqui é uma iluminação a um foco mais particular, mais íntimo com a individualidade humana de uma época.

A arte, representada na pintura holandesa do século XVII consagrou o instante, como algo que nos escapa, uma paisagem humana efémera e um momento que se assinala. A sua representação incide sobre homens e mulheres em tarefas quotidianas, passageiras, mas ainda assim a fixar um momento de eternidade, captado por uma luz que nos olha.

Este olhar que nos interpela como assistentes de um pequeno tempo dá-nos "uma emoção particular e subtil" (1). A pintura holandesa do século XVII parece querer construir uma imagem que sendo um instante procura algo durável, num mundo que foge todos  os dias. Trata-se de uma pintura que nos dá "uma sucessão eterna de acontecimentos isolados" (2), e que compõe uma obra de arte, como um universo que tenta reduzir o tempo a uma dimensão que se fixe em algo permanente. 

O instante, como composição de uma intimidade, de uma alegria e também de uma eternidade. O que é extraordinário nesta pintura é essa representação no corpo do silêncio, na funcionalidade dos objectos, na intimidade dos espaços. Uma pintura que não imagina, não recria mitos, ou símbolos institucionais, políticos ou religiosos, mas que contempla. Apenas contempla. Esta arte do instante, do tempo suspenso é uma representação da contemplação. 

(1; 2) - Arthur Shopenhauer. (2005). O mundo como vontade e como representação. Lx: Formalpress.
Imagem - Vermeer, Detalhe da carta interrompida, 1665-1667, National Gallery of Art, Washington.

segunda-feira, 13 de março de 2017

A arte do instante (I)

A pintura holandesa do século XVII é um momento de grande significado na arte europeia e mundial. É um a arte que representa instantes de silêncio, momentos do quotidiano e que nos convida a entrar num mundo emerso em valores que nem sempre compreendemos, pois referem-se a pessoas que conduziram uma das excepções do século XVII, a Holanda do comércio marítimo. 
É uma arte que funciona como um enigma, uma espécie de parênteses que se organizou fora do próprio tempo e que quase esquece os meios e as relações onde nasceu. O museu do Louvre em Paris inaugura este mês uma exposição sobre essa luz nórdica que o século XVII holandês tão bem soube definir, essa construção do artista no interior do quotidiano, os seres no interior do silêncio.

A pintura holandesa do século XVII retrata-nos uma população plena de um sentido existencial e que parece muito cativada para as artes e que faz da representação na pintura um corpo narrativo da própria existência, onde encontramos formas honestas, ao mesmo tempo que fortes de uma alegria que se evidencia por si própria. Os retratos desta pintura são a reprodução das diversas possibilidades que as cidades, as habitações, os interiores, uma felicidade doméstica, as crianças, as mulheres parecem nos querer contar. Retratos de espaços de intimidade, dos momentos festivos do quotidiano, da bravura de marinheiros e comerciantes e de um comércio que correu oceanos. 

A pintura holandesa do século XVII revela-nos como os impérios são feitos em breves momentos por espaços particulares e de como a genialidade holandesa conseguiu em meio século dar um sentido pragmático e belo a uma entidade material e social. Essa pintura procurou um sentido representativo da vida real, dando-a como ela se oferecia aos cidadãos, revelando as próprias formas de enquadramento dos objectos da natureza. Para esse feito um conjunto de artistas usou técnicas de utilização da cor que nos deixam ainda hoje em estado de admiração. Técnicas de utilização da cor, sem dúvida, mas também da luz, construindo um quadro de perfeita beleza, onde a cor se assume como uma das suas referências.

A pintura do século XVII revela-nos ainda algo antes da técnica. A representação das características das coisas, a identificação dos seus nomes pela forma como elas se enquadram no quotidiano. Há nesta pintura de um modo muito vivo "um grau de verdade e de perfeição que não pode ser ultrapassado" (1). Ela representa uma forma de abandono aos instantes da vida, mas também e ao mesmo tempo um momento ideal, de algo profundamente essencial e vivo na vida dos cidadãos. Há nesta pintura, uma construção de uma felicidade na vida que possa erradicar as ideias do mal que possam surgir, como surpresa irreflectida das coisas. Existe um humanismo nesta luz do norte e ficamos a pensar, de que modo o Calvinismo tão pragmático, foi um condutor para esta procura de uma felicidade no instante e no silêncio das coisas.

(1)  - Georg Wilhelm Friedrich Hegel. (1993). Estética. Lisboa: Guimarães Editores.
Imagem: Vermeer, vista de Delft, 1666-1661, Mmauritshuis, Haia, Holanda.

domingo, 12 de março de 2017

Na memória de Raul Brandão (I)

Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conheço; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao mínimo só as coisas eternas perduram. (...) O Corvo não tem peso no mundo, mas nunca senti como aqui a realidade e o peso do Tempo.  Sob o seu domínio todos caminham, repetindo os mesmos gestos e as mesmas palavras, e arrastando o mesmo fardo sem levantarem a cabeça nem desatarem aos gritos.

Estas figuras despidas e trágicas são tremendas como problemas insolúveis. Erguem-se diante de mim, e arredo tudo, esqueço tudo para os interrogar. Não que eles me saibam responder - eu é que hei-de responder a mim próprio, porque foi isto que me trouxe ao Corvo (...)

Um clima ríspido. De Inverno o salitre entranha-se nos homens e nas pedras. Quase sempre chove. (...) O céu amanhece sempre nublado; se clareia até às dez horas temos sol, senão conserva-se todo o dia forrado de névoas. Ventanias ásperas varrem o morro. O céu muda de aspecto todos os dias e quase a todas as horas. À tarde aquela fumarada espessa despega-se lá de cima e arrasta-se sobre as pedras. Para além o céu azul está quase límpido, mas a nuvem, que se não sabe donde vem, toma todas as formas, e, sempre da mesma cor, fixa-se e não larga os montes do Corvo.

às vezes pára, volta atrás, introduz-se nas gargantas e nos vales, dotada duma vida estranha. Sempre nuvens, sempre vento e em cada ano dois meses de Verão. às vezes um ciclone. Juntem a isto o ruído eterno do mar que ecoa nos paredões e nas almas. O sentimento é de tragédia. Tudo se curva às leis essenciais da natureza neste rochedo vulcânico, erguido no meio do mar amargo, e com espigões de granito até profundidades desconhecidas; neste grande desterro, domínio do Tempo, onde a paisagem não sorri nem as raparigas cantam. (...)

As  da necessidade impõem-se no Corvo como em nenhuma outra 

parte que conheço. É a solidão que as impõe, é a solidão que lhes ensina a ordem, a disciplina ou os sentimentos cristãos? Nós, se não conseguimos suprimir o tempo, arredamo-lo. Eles não. Também só aqui entrou em mim como uma realidade o que esta palavra quer dizer: o pão. (...)
Aqui não há desgraça - aqui não há fome - aqui não há injustiça. E, no entanto, eu não suporto a ideia nde ficar no Corvo, que tem alguma coisa de monástico, de conventoi erguido no meio do mar. O bem talvez - a vida mais pura talvez - menos sofrimento talvez - mas também eu quero ser deus, embora me dilacere e sofra!...

E este debate, que me não larga, enche-me de tristeza.
A pedra é negra, a vegetação utilitária, a vida, grosseira mas com uma religiosidade como nunca vi em outra parte. Estes seres isolados no mundo - unem-se. Num Inverno em que até os aguarelhos, que vivem no mar, morrem se não emigram a tempo, eles encontram refúgio no sentimento cristão de irmandade, que lhes faz suportar a repetição dos mesmos gestos e dos mesmos actos grosseiros durante toda a existência e o abandono a que estão votados. Melhor: amam a sua ilha. Quando as raparigas embarcam para a América até das pedras se despedem abraçando-as. O Corvo é um mundo.

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 36, 49, 50 e 51; Imagens - Copyright - Oliver Schaef

sexta-feira, 10 de março de 2017

Leituras - O capitão saiu para almoçar ...

"somos feitos de papel (...). É preciso sentir mais, pensar menos" (1).

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio reúne uma selecção de registos em forma de diário que  Charles Bukowics escreveu entre 1991 e 1993. Nome muitas vezes confundido com os poetas da Beat Generation, Charles Bukowics é um dos grandes poetas do século XX, pairando sobre ele a dimensão de um mito que sua vida de vagabundo, de uma marginalidade vivida à margem da sociedade americana durante décadas construiu.

Escritor que fez de uma experiência de vida, o material da sua escrita, dando voz a pessoas que viviam na margem da sociedade, de certo modo os despossuídos da América, entre as décadas de quarenta e setenta do século XX.  A poesia de Bukowics leva-nos pelas palavras que retratam a alienação, o isolamento e a fragilidade da vida um mundo humano dominado pela violência. Escrita nascida de uma vontade de se exprimir no mais livre da sua experiência, alimentada por palavras a arder, a sair de uma tela  e ainda assim a narrar uma arte, uma graça que permita ao escritor desenhá-la com o "andar de elegância de um tigre". 

Palavras nascidas do perigo, do jogo, da fome. Palavras nascidas de uma vida alimentada de múltiplos trabalhos, apenas para se levantar, como uma arte que permita fazer vibrar as palavras e com elas incendiar o que pode ser visto. "The dirty old man", como se intitulou deixou neste seu último testemunho escrito, uma herança literária e filosófica alimentada já não tanto no risco, mas do que de subtil, de nuances e sombras fazem preencher a vida. 

O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio dá-nos uma conversa de Bukowics connosco e essa conversação é muito interessante porque ele a faz de acontecimentos rotineiros, peças de escrita saborosa, uma cumplicidade difícil de encontrar. A linguagem é crua, com poucas convenções porque esse é o traço de Bukowics, sempre à procura da chama, de algo que permita uma escrita que faz descer o mundo até cada um de nós. Os recursos do escritor, a sua escrita, a música, os animais, a humanidade observada e uma rotina de esquecimento que entrega o mais visível  a miragens, a vida pouco honrada em si própria. 

Alternando entre a crítica, o sarcasmo e a ironia, O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio pode ser a porta de entrada para o universo de Bukowics aos que ainda não mergulharam em palavras à procura do fogo capaz de iluminar "esse palhaço na escuridão" (pág. 23) e, construir o melhor que o mundo tem, "continuar sempre a avançar, à procura de coisas, a formar frases, a divertir-se" (pág. 96). E descobrir um escritor essencial da cultura contemporânea, numa escrita feita de uma combustão interior. Descobrir que no fim a morte tem a mesma gravidade do que o desabrochar de uma flor. É o tempo a renascer, a vida a reconstruir-se. 

(1) - Charles Bukowics. (2016). O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram o navio. Lisboa: Alfaguara, página 73.