quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Leituras - O lugar supraceleste

"O corpo não é o inimigo da alma. É essa a minha crença. Ambos precisam do mesmo sustento, que a ambos liberta: a verdade. Nas palavras de Goethe, "amaldiçoo a  mentira: ela não liberta a alma, ao contrário da verdade". Tal como Goethe, não falo aqui de uma verdade teológica, filosófica ou outra. Falo apenas da limpidez autêntica da verdade, em todos os nossos actos, gestos e palavras. Assim, o inimigo da alma não é o corpo; o inimigo da alma é o contrário da verdade."  

Existem livros que não nos narram histórias, eventos, ou experiências. Existem autores que não escrevem sobre o imaginário que não conhecemos ou sobre as experiências que a vida nos oferece no sentido da apresentarem como aquilo que são, apenas a face externa delas próprias. Existem livros que procuram no silêncio da realidade uma forma de encontrar uma extensão possível do que cada um é. Existem autores que procuram já no âmago da pedra verificar o sentido do enigma, o que Rilke chamaria a melodia das coisas.

O Lugar supraceleste de Frederico Lourenço é um desses livros e ele um desses escritores à procura da chama íntima das coisas, quando o futuro ainda é presente e quando o real é ainda uma possibilidade de cada um de nós, de construção de uma sabedoria. É um livro lindíssimo, no sentido de uma revelação, de uma caminho que sobe uma escadaria para chegar a um lugar mais elevado, o supraceleste.
"O mais íntimo tutano da alma", expressão de Eurípedes, a que Frederico dá corpo como uma linha desenhada na vida, construída no tempo. Livro lindíssimo, sim, mas de uma dificuldade imensa para o capturar, para o trazer para nós, nesse conhecimento que é uma sabedoria de que Frederico dá conta de forma tão substantiva que nos deixa à mercê de um sonho, o nosso, o que faremos dele.

Livro que procura uma ascensão, que tenta chegar às estrelas, às circunferências iluminadas de azul, às rosas de Píndaro para escrever a identidade de um caminho muitas vezes feito de angústia e por onde esse perfume de rosas faz avançar para outras formas de ser, sempre na margem de uma verdade pessoal, uma respiração das coisas em nós, quer dizer, nele. Em nós, também porque o livro é uma conversação, porque nos tenta dizer o que já fizeste para encontrares na manhã dos dias, "o mais íntimo tutano da alma?"

A escrita do livro  que Frederico propõe a si e que nos revela a nós faz-se muito da ideia de ascensão, de subida a um tempo de reconstrução pessoal, como forma de avançar. Ideia alimentada pela atmosfera musical e estética da Bach. O Lugar supraceleste é o desenho de um caminho, uma rota feita e é nesse sentido uma viagem, não com um traçado definido, mas na sua forma mais sublime, viajar para conhecer o mundo e os outros.

Ana Mota Ribeiro na apresentação do livro falou da erudição de Frederico como uma das suas chaves, erudição que nos comove, nos alimenta em pequenos pormenores, pois nós não somos desse mundo, ao contrário dele que parece ser "de outro tempo, de outro lugar". Frederico vive em diferentes tempos, esse de onde ele espalha uma sabedoria e um cuidado com que relata a melodia das coisas e as imagens com que escreve o tempo actual. E nesse sentido essa vivência em tempos diferentes permite-lhe "falar das insónias de Zeus como se falasse das nossas. (1)"

O Lugar supraceleste é uma ascensão que parte de lugares, de pessoas e de afectos. O Lugar supraceleste é uma ascensão que vive de atmosferas formativas, os pais, os lugares sagrados, os sons de uma aprendizagem para reordenar a mente para novas possibilidades. O Lugar supraceleste é uma ascensão tentada como uma vida a construir-se e a perguntar-se que valor e sentido tem, que perguntas importa responder. Sem dúvida a concretização da ideia de Eurípedes, o conhecimento do nome das rosas, da sua fragância e a descoberta de um belo que é tocante, do qual nascerá outro, assim o saibamos formular. 

O Lugar supraceleste é sobre uma viagem, um caminho de ascensão que já sabe na revelação de um belo que ele é um efémero e que essa dicotomia é a base de qualquer forma de revelação. A resposta mais bela para esse conhecimento é construir uma sabedoria que se faz de interrogação e de um caminho que cada um entrega a si próprio. Viagem confrontada com os caminhos nem sempre agradáveis da infância/adolescência, daquilo que só mais tarde se compreende.

O Lugar supraceleste revela um sentido de procura para em tempos diferenciados entender o que antes não se entendeu e compreender a fragância que os pais sempre dão e ver nela o que se pode entender dentro de nós, dentro dele, mas também os que quiserem ter a coragem de realizar essa viagem. O Lugar supraceleste é um livro de uma imensa e clarividente coragem, de uma exposição à procura de uma revelação. A que transporta a doçura herdada, como no seu caso da mãe que é imensamente tocante, uma definição sobre o amor, uma memória de todo o futuro, ou na memória do pai e do seu sentido redescoberto mais tarde.

E, finalmente a conquista de uma sabedoria que importa que nós façamos, a de compreender a frase de Voltaire, “Le paradis terrestre est où je suis.” E aprendemos com ele essa lição maior que os Gregos já conheciam, a identificação de paraíso com jardim, o que nos conduz ao corpo e à substância das experiências e do que cuidamos. E ainda essa ingenuidade ou saber feito dedicação vinda de Witenstein, de que as flores falam, o que nos faz acreditar em nós como cuidadores de fragâncias. E ainda e sempre a música, a cartografia desenhada de sons que permitem simbolizar essa ascensão. O Lugar supraceleste fala de tudo isso que é a vida, estabelece connosco uma conversação para que da experiência de Frederico nós também saibamos fazer perguntas e encontrar as nossas respostas, realizar a nossa viagem. Um livro deslumbrante de uma figura fascinante.

(1) - Anabela Mota Ribeiro, apresentação do livro, blog da Cotovia.

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