domingo, 11 de setembro de 2016

Leituras - O coração também pensa

Há no mundo uma inquietante falta de espiritualidade, uma ausência de valores sagrados, que sentimos como o efeito de uma sociedade moldada pela materialidade, pela idolatria da técnica. Encontramos neste mundo uma ambição desmesurada, a monótona respiração do poder, uma ferrugem que condiciona o amor e esconde muita da essência mais autêntica, do que significa  o ser humano. Vivemos num mundo de desejo, uma ditadura de imagens que pensa pouco na consciência, usa-a pouco e que rejeita os princípios morais. Todas as opiniões se tornaram possíveis, numa sociedade que ignora a existência do mal, que dá à providência a capacidade de tudo esperar, mas que nunca nos inicia na construção de um caminho que só pode ser individual.

Caminho, como única forma de chegar a um centro que somos nós, "o centro divino de nós próprios", a compreensão da nossa realidade viva, uma forma de "santidade" que cada mistério individual comporta, o despojamento profundo das águas. Um caminho que recupere a harmonia, que a coloque como forma de expressão de valores tão essenciais, como o que é belo, o que exprime gratuidade. Esse valor de Bem que o universo contempla, uma ideia de criação que nos liga a um criador e à necessária forma de encontrar o que é verdadeiro. O mundo humano privou-se do Bem e do Verdadeiro, e nesse sentido perdeu o Belo. A Literatura, o Cinema e as Artes Visuais têm expressado  em demasiados casosum narcisismo que tudo ignora criando um sentido humano marcado pela absoluta falta de harmonia.

O mundo humano tornou-se amplamente desagradável, feito de corpos artificiais, formas sombrias ligadas. A eficiência e o rendimento são os novos deuses. Existe pouco atenção ao olhar, aos valores desenhados pelo comportamento. Desolação que atinge os media e o próprio discurso litúrgico, feitos muitas vezes de episódios de banalidade, de luz sem refrigério, colunas sem penumbra. Desolação que matou a ascensão ao Eterno, onde a maioria perdeu todo o temor por um mundo natural, como expressão emotiva de um criador. Mundo humano já de poucas palavras significativas, de uma luz que não ilumina, cega pelos interesses próprios, ou confundida pelas ambições de poder.
Mundo humano que perdeu a capacidade de ver, que se ausentou da razão que suporta a própria dignidade e que faz assim perder o mistério individual em cada pessoa. A técnica tornou-se uma religião que muitos confundem com o valor ético do Bem e dispensou o trabalho artesanal de cada indivíduo. Falta-nos a construção desse olhar que nos permita sonhar em ser "um pouco menos que os anjos". Falta-nos ser participantes da natureza que o universo nos concedeu, assumir a dor como uma fonte capaz de construir uma emoção que torne possível o sentir encanto e encontro nos outros. 

E como as árvores na natureza aceder a uma essencialidade que seja como um dom humano construído em rostos alheios, em dias de alegria e em dias de tristeza, as nossas próprias lágrimas como reconhecimento do mistério. Segundo volume da sua autobiografia, O coração também pensa de Susanna Tamaro é um livro que busca a sinceridade de uma escritora na sua inquietação interior e que complementa o volume anterior, Todo o anjo é terrível. Livro de grande generosidade e luz interior para tornar possível a construção de uma essência que permita responder a uma desarmonia evidente.

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