domingo, 15 de maio de 2016

Deambular por Londres com Virginia Woolf (I)

Nunca aconteceu, talvez, alguém sentir-se apaixonadamente distraído por um simples lápis. Mas há circunstâncias nas quais o desejo de possuir um se pode tornar absolutamente avassalador; momentos em que, sob pretexto de possuir um objecto, estamos a inventar uma desculpa para calcorrear metade de Londres entre a hora do chá e a hora do jantar. (...)
protegidos por este argumento nos pudéssemos entregar, em segurança, ao mar dos prazeres com que a vida citadina nos alicia durante o Inverno - deambular pelas ruas de Londres. Convém que a hora seja ao cair da tarde, e a estação o Inverno, pois no Inverno o brilho esfuziante do ar e a sociabilidade das ruas são compensadoras. Não nos sentimentos atormentados, como no Verão, pelo desejo de sombra, de isolamento e do ar suave dos campos de feno. E também porque o cair da tarde nos permite sentir a irresponsabilidade que a escuridão e a luz dos candeeiros concedem. Já não somos exactamente os mesmos.
Assim que pomos um pé fora de casa, entre as quatro e as seis horas de uma bela tarde, largamos o eu pelo qual os amigos nos conhecem, e tornamo-nos parte daquele vasto exército republicano de vagabundos anónimos cuja companhia é tão agradável, depois de termos estado no retiro daquele quarto só nosso. Porque neste permanecemos rodeados de objectos que expressam, de modo eterno, a singularidade dos nossos temperamentos e reforçam as memórias da nossa experiência.
Virgina Woolf. (2016). Fantasmagorias. Lisboa: Feitoria dos Livros, pá. 29 e 31

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