Viver longe da natureza é uma forma de nos esquecermos, é uma
formulação para uma ausência da nossa consciência. As palavras são breves
instrumentos da linguagem que vivem incompletas sem o horizonte que um campo
cultivado, uma floresta de abetos permite construir em nós. Ulisses gostava dos
trabalhos de cultivo da terra.
Sophia dá-nos essa ideia, a civilização em que o
pensamento se afastou da mão. O que quer dizer que se afastou do corpo. Assim
construímos formas de vida feitas de “meias verdades, de meias palavras,
exilados de nós próprios” (José Tolentino Mendonça, “Constrói um jardim”, in
Que coisa são nuvens”). Vivemos emergidos em formas de vida social, marcados
por linhas desumanas, necessidades estranhas que estão distantes, estrangeiras,
imaginadas em prateleiras de sonhos de pura burocracia. Somos condutores de
experiências que não se formam em nós, não se formulam na nossa identidade.
O mudo de sucesso de todo o empreendedorismo tem conduzido à
construção de formas de vida tóxicas, baseadas na produção cega, os químicos
destruidores da vida e do crescimento, os tempos dilacerados em estantes de
dinheiro fácil. É pois preciso voltar ao campo e sentir as palavras de Tao Qian
ditas no século IV, “Em jovem não me adaptava à vulgaridade: amava as colinas e
os montes. Por engano, depois, deixei-me prender nas malhas do mundo e assim
dispersei muitos anos da minha vida. Mas o pássaro aprisionado tem saudade da
antiga floresta e o peixe do riacho recorda quando nadava livre na corrente.
Foi quando avistei a sul estes campos incultos. Para preservar a minha
simplicidade regressei aos campos. Por longo tempo encerrado numa gaiola pude
por fim voltar à minha natureza”.
Voltar à minha natureza, tradução da ideia chinesa de ‘fanzir’, o que
significa que sermos nós é sermos devolvidos ao que somos, a revelação a nós
próprios. As palavras são insuficientes, pois não condensam toda a verdade
emotiva. Pensar o mundo é olhar o mundo, ver o que nos rodeia e construir uma
forma de sabedoria. Cuidar de um jardim é uma forma de educação. Os homens
letrados da China do século VIII pensavam-no como forma de vida. “Desde que
habito aqui, levanto a cabeça e avisto a montanha.
Baixando-a, escuto as fontes. Viro-me para o lado e apercebo-me do
bambu, das árvores, das nuvens e dos rochedos. De manhã e ao entardecer eles
todos têm uma única voz. Instantaneamente o mundo abraça-me e a minha
respiração abandona-se como convém, interiormente e externamente. Depois de uma
noite o meu corpo acalmou-se; duas noites e o meu coração encontrou paz. Três
noites e sinto-me tão bem que perco a consciência de tudo sem saber como isto
se produz. O mundo que me rodeia conduz-me à sabedoria.”
Construir um jardim é pois, a forma de encontrar de uma totalidade de
ser.
É a oportunidade para compreender a própria dimensão das nossas
falhas, os erros que nos consomem, as fracturas que tentamos remediar num mundo
que se quer omnipresente e sem falhas. O jardim é a contemplação de um arranjo
que se vê no possível, no que existe, às vezes grande, outras vezes pequeno,
mas sempre grandioso. A humildade do que podemos ser e as formas maiores da
nossa eloquência constroem-se com uma felicidade que reconhece a si própria. É
à nossa volta que se o mundo natural emerge como uma lição maior, uma sabedoria
capaz de resgatar formas de existência que se reduzem a ritmos desajustados do
coração, o sentido sanguíneo e respirado do corpo.
A partir de um texto de José Tolentino Mendonça,
“Constrói um jardim”,
in Que coisa são nuvens”; Imagem: Copyright - m-ban