terça-feira, 1 de setembro de 2015

Leituras - A menina dentro da cereja

É verdade: no fundo, nunca se regressa a nada. Mas temos, muitas vezes, a ilusão de regressar. E agarramo-nos a essa ilusão desesperadamente, como se ela não fosse, de facto, uma ilusão, apenas isso. Agarramo-nos como náufragos no meio de um oceano em plena tempestade se agarram a uma tábua pensando salvar-se. Pura ilusão. (p. 69)

A menina dentro da cereja é um livro sobre uma família, sobre este país parado no tempo, uma sociedade bloqueada, sobre os sonhos de infância, essa geografia de liberdade, do vento do rosto e dos adultos, estranhos como o mundo. A menina dentro da cereja é um livro sobre a adolescência, sobre os fragmentos de verdade, a loucura imanente da vida social que desenham escolhas e opções e fazem naufragar os sorrisos breves e encantados dos sonhos. 

A menina dentro da cereja é sobre esse tempo em que a casa parece guardar os mais novos do furor do mundo e cuja ferocidade nos faz perder o encanto de manhãs em perfumes de inocência. A menina dentro da cereja é um livro sobre os adultos, as suas estranhas relações, os seus percursos dominados por referências sem tempo. A menina dentro da cereja podia ser o retrato de uma geração que tem dificuldade em ligar a sua respiração e a memória. É sem dúvida um livro sobre esse País esquecido de si, dominado por políticos tecnocratas, onde uma sociedade sem referências tenta sobreviver ao lado de movimentos individuais dos que tentaram nas suas memórias, padrões de referências, regressos a uma qualquer substância. 

A menina dentro da cereja é um livro sobre a nossa solidão, as estranhas figuras de um país velho, onde o amor poucas vezes pode esquecer um quotidiano burocrático. A menina dentro da cereja dá-nos os caminhos de desencontros de personagens que conhecemos. O Porto aristocrático e as suas brumas de mistério, onde uma família se desconhece com os fragmentos de episódios de vidas consumidas em excessos e em padrões aparentes de memória. O país da geração que estudou e não encontrou uma verdadeira oportunidade, onde, em caminhos desencontrados procurou um sentido para a sua existência. A menina dentro da cereja é um exemplo vivo e esclarecedor de como a Literatura tem mais ferramentas que a História, que as Ciências Sociais para desmontar estruturas mentais, processos políticos e quadros sociais. 

A crise real do país, é essa continuidade de um tempo longo, essa estagnação que tirou realismo à vida das pessoas, desligando gerações e fez em cada um passos solitários, alegrias breves. E sobretudo, essa ilusão de referências, de regresso ao que já não existe, a artefactos onde já só moram fantasmas e pó. É a partir destes que importa recomeçar, ou tão só continuar, sabendo que o caminho somos nós, ou formas descontinuadas de tristeza e esperança.

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