«Se escavarmos as nossas memórias de infância lembramos
primeiro caminhos, e depois coisas e pessoas - carreiros no jardim. O caminho
para a escola, o percurso em volta da casa, áleas por entre fetos e erva
verde.» (1)
Toda a nossa história humana se construiu em redor desta
escolha, que todos fazemos, entre o desconhecido, a miragem da geografia, o
cansaço do corpo nos trilhos do vento e o lugar fixo, sedentário. Entre
pastores e camponeses, entre a Geografia e a História, a dúvida no amanhecer e
a certeza em todos os dias, eis a escolha que a condição humana tem feito. No
essencial, a viagem.
Ela é a marca impressiva, o pergaminho que nos dá o
reconhecimento do que somos, a verificação das capacidades individuais nos momentos
em que o real, o quotidiano é desordenado pelo azul do céu, o verde das
florestas ou o castanho poente do deserto. Poucas coisas, raras, são as que nos
dão a oportunidade de fazer a descoberta interior, como as que encontramos nos
tons da aurora e do crepúsculo, na brancura das nuvens, na descida de um rio ou
na subida íngreme de um trilho de montanha.
É na Geografia que descobrimos a multiplicidade do que
somos, tão difícil de explicar. É ela que nos permite o nosso irregular talento
por criar a originalidade humana. Perante a dimensão do natural conseguimos
exprimir melhor as emoções que numa sociedade civilizada tem demasiados
obstáculos ao sentido do ser.
Michael Onfray escreveu um livro fascinante sobre a
viagem, as motivações dos viajantes, o desejo de encontro nos vastos espaços, a
cartografia do mundo no encontro com a memória e com a palavra.
Um livro que nos faz descobrir como o viajante encerra em
si uma liberdade capaz de discutir as certezas dos que vivem instalados num
real conhecido, previsível e domesticado pela razão e pelo conforto. As
culturas, os homens que na História ousaram construir sob o tempo social, um
outro, mais individual, subjectivo, emocional, guiados pela Natureza e seus
ritmos conseguiram chegar ao encontro único. Aquele que podemos fazer com nós
próprios, num movimento finito, que apesar da mortalidade nos permita comportar
como «fragmentos da eternidade» (2)
(1) Bruce
Chatwin, Anatomia
da Errância
(2) Michael Onfray, Teoria da Viagem
Sem comentários:
Enviar um comentário