A fronteira entre ficção e não ficção mais se
parece com uma ponte fácil de atravessar. Mais difícil é dizer quando começa
a imaginação e onde termina a experiência, ou quando tudo não passa de relações de
boa vizinhança. Se isso tudo é verdade, no caso de Jorge Amado esse limite
ténue vira quase certeza. Suas personagens são todas retiradas de exemplos do quotidiano e baseadas nos amigos de primeira hora. Elas podem ser encontradas
sem dificuldade no salão do sobrado, na delegacia, na casa de fazenda, no botequim
e na rua. Quem de nós já não topou mais de um tipo, e até na própria família,
que parecia pedir para entrar num romance de Jorge?
Por outro lado, os nomes de pessoas e lugares
que nasceram dos livros de Jorge Amado hoje viraram logradouros conhecidos,
sobretudo na Bahia. Assim, ninguém sabe dizer onde começa o mito e quando
termina a realidade, e nem vale a pena tentar deslindar. E isso em grande parte porque as personagens
de Jorge não apenas possuem feições, gestos e modos de falar próprios, mas
também biografias e mais completas do que as de muitas figuras históricas, e
porque em seus enredos se entre tecem a invenção, a observação e a memória. Ele
recria o existente, faz do real ficção. E vice-versa. Passa, portanto, por
aquele teste que singulariza os grandes romancistas, os romancistas realmente
grandes: faz emergir do mundo das palavras personagens que não se apartam de
nossa memória e de nosso convívio. Saem de seus livros e ficam connosco.
Jorge
Amado é também uma espécie de divulgador de uma determinada maneira de interpretar
o Brasil. Numa época em que a mistura de raças era entendida como um grande
problema, já nosso autor, nas obras que foi criando, se transformou num grande
defensor da mestiçagem. E não só da cultural. Jorge, sem descuidar dos brancos
e dos negros, tinha especial carinho pelos mulatos, cafuzos, caboclos e
mestiços indefinidos. A sua Bahia é antes de tudo lugar de confluência, onde
indivíduos vindos de todas as partes do mundo não só se acotovelam, se
confundem e se transformam em baianos, mas também se casam fora de seu grupo.
Mas não se imagine que aqui mestiçagem é sinónimo de integração e da falta de
conflito. Ao contrário, por aqui inclusão combina com exclusão social e um
mundo complexo toma forma a partir do conjunto de seus vários livros.
Não
por acaso, em sua obra, se torna nítida a percepção de Salvador como, ao mesmo
tempo, a mais portuguesa e a mais africana das nossas cidades. Para ele, a mais
brasileira, e não só por sua lusitanidade, negritude e mestiçagem, mas por
vários outros importantes motivos, entre os quais se destaca o amor pela festa.
A exaltação da festa percorre, implícita ou explicitamente, toda a obra de
Jorge Amado. A festa surge como uma espécie de ritual a congregar diferentes
grupos, que suprimem, mesmo que por momentos contingentes, suas diferenças
sociais. Nesse espaço da festa, comungam o catolicismo com os rituais do
candomblé, a festa profana com a festa sacra, as comemorações de rua com as
celebrações de dentro de casa, os espaços públicos com os privados. Porém,
nesse grande ambiente o grande mote é a própria Bahia ou, melhor, uma certa
habilidade que aparece como exemplo de mistura e de convivência de grupos, no
melhor e único dos sentidos.
Nesses tempos actuais, em que novamente o tema da exclusão social
anda na pauta do dia, a obra de Jorge Amado surge como um alento a lembrar uma
determinada forma de convivência que, sem ser uma democracia racial, sempre
aspirou por ela. É certo que nos livros de Jorge a violência do paternalismo,
do compadrio, dos meninos sem lar, da falta de recursos aparece de maneira
directa e sem concessões. No entanto, transparece também uma maneira singular
de convivência cultural, que não significa o final das hierarquias ou da
desigualdade, mas sinaliza para certas estruturas, as quais, marcadas pelo
tempo, insistem em reaparecer.
Seus
romances falam de tempos em que não se afastavam os pobres para a periferia e
os morros das cidades, em que as portas-e-janelas e até mesmo as choupanas se
erguiam lado a lado das moradas-inteiras, dos sobrados e dos casarões em centro
de jardim. Por outro lado, os seus habitantes não só se cumprimentavam, mas se
conheciam e muitas vezes compartilhavam as tristezas e as alegrias. Aí está o
universo dos romances de Jorge Amado, nos quais, a despeito da tensão
presente, transparece uma alegria que transborda das mais diferentes e
inusitadas situações.
Talvez porque, no mundo de Jorge, os deuses, que se
misturam connosco e chegam em certos momentos a nos dar o braço, sabem fazer
passar pela urdidura da injustiça, da mágoa e da pobreza a trama da festa e da
alegria. O que temos é, assim, uma obra marcada pela
ambivalência, que, antes de se mostrar contraditória, chama pela reflexão.
Violência convive com cordialidade, alegria com tensão, liberdade com
cerceamento, riqueza com indigência.
Qualquer vida é feita de muitos pedaços, nem
sempre harmoniosos. Nos livros de Jorge Amado ela surge tensa e repleta de
ambiguidades. E talvez por isso incomode e leve ao contínuo diálogo. Não há
receita fácil na literatura dele, e um mundo distante do dia-a-dia de muitos de
nós (repleto de termos estranhos retirados dos lugarejos do interior da Bahia e
de situações por vezes inusitadas) acaba sendo percebido como próximo e
identificado. Nosso autor é mesmo um grande mago que faz do longe, perto; e do
estranho, familiar.
Lilia Schwarcz, Companhia das Letras, (Via Blimunda 03.08.2010)
Sem comentários:
Enviar um comentário