segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Jorge Amado

A fronteira entre ficção e não ficção mais se pa­rece com uma ponte fácil de atravessar. Mais di­fícil é dizer quando começa a imaginação e onde termina a experiência, ou quando tudo não passa de relações de boa vizinhança. Se isso tudo é ver­dade, no caso de Jorge Amado esse limite ténue vira quase certeza. Suas personagens são todas retiradas de exemplos do quotidiano e baseadas nos amigos de primeira hora. Elas podem ser encontradas sem dificuldade no salão do sobra­do, na delegacia, na casa de fazenda, no bote­quim e na rua. Quem de nós já não topou mais de um tipo, e até na própria família, que parecia pedir para entrar num romance de Jorge?

Por outro lado, os nomes de pessoas e lugares que nasceram dos livros de Jorge Amado hoje viraram logradouros conhecidos, sobretudo na Bahia. Assim, ninguém sabe dizer onde começa o mito e quando termina a realidade, e nem vale a pena tentar deslindar. E isso em grande parte porque as personagens de Jorge não apenas possuem feições, gestos e modos de falar próprios, mas também biogra­fias e mais completas do que as de muitas fi­guras históricas, e porque em seus enredos se entre tecem a invenção, a observação e a memó­ria. Ele recria o existente, faz do real ficção. E vice-versa. Passa, portanto, por aquele teste que singulariza os grandes romancistas, os roman­cistas realmente grandes: faz emergir do mundo das palavras personagens que não se apartam de nossa memória e de nosso convívio. Saem de seus livros e ficam connosco.

Jorge Amado é também uma espécie de divul­gador de uma determinada maneira de inter­pretar o Brasil. Numa época em que a mistura de raças era entendida como um grande proble­ma, já nosso autor, nas obras que foi criando, se transformou num grande defensor da mestiça­gem. E não só da cultural. Jorge, sem descuidar dos brancos e dos negros, tinha especial carinho pelos mulatos, cafuzos, caboclos e mestiços in­definidos. A sua Bahia é antes de tudo lugar de confluência, onde indivíduos vindos de todas as partes do mundo não só se acotovelam, se confundem e se transformam em baianos, mas também se casam fora de seu grupo. Mas não se imagine que aqui mestiçagem é sinónimo de integração e da falta de conflito. Ao contrário, por aqui inclusão combina com exclusão social e um mundo complexo toma forma a partir do conjunto de seus vários livros.

Não por acaso, em sua obra, se torna nítida a percepção de Salvador como, ao mesmo tempo, a mais portuguesa e a mais africana das nossas cidades. Para ele, a mais brasileira, e não só por sua lusitanidade, negritude e mestiçagem, mas por vários outros importantes motivos, entre os quais se destaca o amor pela festa. A exaltação da festa percorre, implícita ou explicitamente, toda a obra de Jorge Amado. A festa surge como uma espécie de ritual a congregar diferentes grupos, que suprimem, mesmo que por momentos con­tingentes, suas diferenças sociais. Nesse espaço da festa, comungam o catolicismo com os rituais do candomblé, a festa profana com a festa sacra, as comemorações de rua com as celebrações de dentro de casa, os espaços públicos com os pri­vados. Porém, nesse grande ambiente o grande mote é a própria Bahia ou, melhor, uma certa habilidade que aparece como exemplo de mistu­ra e de convivência de grupos, no melhor e único dos sentidos.

Nesses tempos actuais, em que novamente o tema da exclusão social anda na pauta do dia, a obra de Jorge Amado surge como um alento a lembrar uma determinada forma de convivên­cia que, sem ser uma democracia racial, sempre aspirou por ela. É certo que nos livros de Jorge a violência do paternalismo, do compadrio, dos meninos sem lar, da falta de recursos aparece de maneira directa e sem concessões. No entan­to, transparece também uma maneira singular de convivência cultural, que não significa o final das hierarquias ou da desigualdade, mas sina­liza para certas estruturas, as quais, marcadas pelo tempo, insistem em reaparecer.
Seus romances falam de tempos em que não se afastavam os pobres para a periferia e os mor­ros das cidades, em que as portas-e-janelas e até mesmo as choupanas se erguiam lado a lado das moradas-inteiras, dos sobrados e dos casarões em centro de jardim. Por outro lado, os seus habitantes não só se cumprimentavam, mas se conheciam e muitas vezes compartilhavam as tristezas e as alegrias. Aí está o universo dos ro­mances de Jorge Amado, nos quais, a despeito da tensão presente, transparece uma alegria que transborda das mais diferentes e inusitadas si­tuações. 

Talvez porque, no mundo de Jorge, os deuses, que se misturam connosco e chegam em certos momentos a nos dar o braço, sabem fazer passar pela urdidura da injustiça, da mágoa e da pobreza a trama da festa e da alegria. O que temos é, assim, uma obra marcada pela ambivalência, que, antes de se mostrar contra­ditória, chama pela reflexão. Violência convive com cordialidade, alegria com tensão, liberdade com cerceamento, riqueza com indigência.

Qualquer vida é feita de muitos pedaços, nem sempre harmoniosos. Nos livros de Jorge Ama­do ela surge tensa e repleta de ambiguidades. E talvez por isso incomode e leve ao contínuo di­álogo. Não há receita fácil na literatura dele, e um mundo distante do dia-a-dia de muitos de nós (repleto de termos estranhos retirados dos lugarejos do interior da Bahia e de situações por vezes inusitadas) acaba sendo percebido como próximo e identificado. Nosso autor é mesmo um grande mago que faz do longe, perto; e do estranho, familiar

Lilia Schwarcz, Companhia das Letras, (Via Blimunda 03.08.2010)

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