No reino da austeridade nunca há cortes cegos. Os seus ideólogos têm sempre uma retórica de justificação preparada que serve acima de tudo para dar uma aparência técnica a decisões que não são senão escolhas políticas. Despedir não é despedir, é racionalizar e isso é a ferramenta de um domínio ideológico sobre as pessoas. A elite económica de Portugal viveu e vive claramente a cima das nossas possibilidades. Capturou o Estado e faz dele o alicerce da sua acumulação de riqueza, descapitalizando-o para o exercício das funções que uma sociedade frágil e pobre exige. Zomba da lei e do interesse público. E, no fim, ainda tem o desplante de fazer para a sociedade que os alimenta a apologia da miséria. (Págs. 70, 71 e 76).
Linhas Vermelhas é um dos livros mais interessantes saídos nos últimos meses sobre a realidade económica, social e política do País. Linhas Vermelhas no sentido de um farol de mínimo de decência e dignidade que não deve ser transposto. O livro do professor de Coimbra na área dos estudos sociais organiza uma reflexão sobre algo essencial e que os media costumam ignorar, para benefício do governo, a linguagem e o que ela esconde, e o âmago de uma construção ideológica que parte do discurso da crise para implementar o seu modelo neoliberal contra as pessoas e de favorecimento dos grupos monopolistas e agentes políticos que os servem. O livro organiza-se em sete capítulos, a saber:
- Cap. 1 - De como aqui chegar ( A Dívida como principal referência da luta política e a austeridade como ferramenta ideológica e política);
- Cap. 2 -Quem é o interesse nacional (Do discurso oficial do empobrecimento, da diminuição dos custos do trabalho como construção ideológica);
- Cap. 3 - A crise-como-política (A dupla centralidade do discurso da dívida, como reconfiguração de Portugal e a sua periferização no campo europeu e o dispositivo de redução da resistência social e a alteração preversa dos contratos de trabalho);
- Cap. 4 - A governação europeia de Portugal (O modelo de apropriação por governos de direita na formulação ou nas práticas e a sua instrumentação pela União Europeia para a construção de um domínio político e esvaziamento da cidadania);
- Cap. 5 - O mundo inteiro (Os povos esquecidos perante uma ideia de miséria cultural e social - o Eurocentrismo);
- Cap. 6 - Em sentido contrário (Conhecer a realidade, aprender a sua formulação para romper e procurar uma nova ética para uma nova óptica, ou a necessidade de um desobediência organizada e solidária contra uma Europa, em nome da defesa dos que não têm voz, contra a insustentável pobreza);
- Cap. 7 - Conta-me como será (Do País pobre, do esvaziamento político da democracia e da anulação das pessoas como elementos culturais e humanos).
Linhas Vermelhas desmonta com eficácia a incompatibilidade de um discurso político que ilude as pessoas ao assumir coerência entre mercados e democracia. É esta que se desmonora com a destruição da dimensão económica e que conduz a um enigmático autoritarismo social. Linhas Vermelhas no sentido mais racional conduz o discurso necessário para que as esquerdas se repensem e sejam um espaço de discussão para a ideia essencial de reestruturar a dívida.
O País só poderá ser uma democracia real se essas alternativas tiverem alguma expressão. E como vemos, a ausência de discurso de fractura com o que empobreceu os cidadãos tomado pelo PS sem discussão do que é decisivo para as pessoas revela que o caminho é outro. O de pensar a decência e combater uma narrativa ideológica de desprezo pelos valores humanos e a vida colectiva que tenha sentido para todos. Linhas Vermelhas é um contributo para pensar as alternativas e fazer com que as eleições sejam mais que alternância sem alteração substantiva de nada.
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