terça-feira, 11 de agosto de 2015

Coragem

Lembra-se de mim? Creio que sim. Sim, sou eu. Conhecemo-nos. Fomos colegas, embora você tivesse feito sempre tudo o que podia para me ignorar. E porquê? Porque mesmo nessa altura eu tinha feito um juramento de fidelidade - era por essa que vocês, intelectuais livres, me olhavam com desprezo. Seremos pessoas menores quando estamos dispostas a curvarmo-nos perante a autoridade? Muitas vezes tentei começar uma conversa  consigo e com os seus amigos, isto é, uma conversa socrática: nós pessoas cultas, juntas, buscando a verdade de acordo com as leis da dialéctica.(...)

Primeira questão. Porque é que nós, que conhecemos os clássicos, que somos sensatos, deveríamos esforçar-nos por um mundo melhor? Não seremos aqueles que deviam ter mais juízo? Responda-me! Quem está a lamentar constantemente a estupidez intelectual das épocas, a queixar-se de que é o dinheiro que mata toda a moral? Exactamente, Francisco Petrarca, nas suas cartas inigualáveis. Há setecentos anos, meu amigo. Setecentos anos. Desde então houve alguma época, ou mesmo um ano, em que esta queixa não fosse feita? Foi feito algum progresso real a este respeito? Sabemos a resposta. Você é tão nobre quando se trata da sua amada verdade, e no entanto não tolera a autoridade. Porquê esta necessidade absoluta de liberdade e da democracia? (...)

Porque despreza o fascismo? Será a sua democracia realmente assim melhor? Serão os seus líderes melhores do que os da nossa utopia fascista? Não sou estúpido: vamos perder esta guerra. Mais um ano, talvez dois, mas depois esta aventura acaba. Não tenho nenhum problema com isso. As nossas ideias irão ficar, as pessoas irão aprender com o que sabemos. Preste atenção às minhas palavras: 'a democracia será restaurada de um lado ao outro do globo' com um grande sentido de drama. E depois o que acontece? Fomos nós que inventámos o poder da propaganda, das imagens, e a embriaguez que provém de se fazer parte das massas. Fomos nós que compreendemos que as pessoas estão mais interessadas na aparência do que na substância. Imagens agradáveis e retórica - esse, meu amigo, é o nosso legado e ninguém lhe escapará.  

O que verdadeiramente não entendo é como você pode pensar que a democracia e a sua cultura podem coexistir? As massas não estão interessadas, porque as suas cabeças não querem questões e as suas barrigas querem ser alimentadas. Os políticos não estão interessados, porque o seu poder depende da estupidez das massas. E os verdadeiramente poderosos, os que têm o dinheiro, não estão interessados, porque a cultura custa dinheiro. (...) Quer melhorar o mundo. Alguma vez reparou que, assim que estão no poder, todos os revolucionários, sejam jacobinos ou marxistas, só querem uma coisa: mais poder? E alguma vez reparou que assim que os pobres deste mundo adquirem algum dinheiro, só querem uma coisa: mais dinheiro? Mais poder, mais dinheiro; (...)

Se o mundo não pode ser melhorado - e certamente estas últimas décadas terão, espero, mostrado que tal nunca acontecerá - então só uma conclusão pode estar certa: obedece ao poder governante; adapta-te, e tenta acumular tanto poder para ti quanto possível. (...) Um país moderno não quer mais terra: um país moderno quer novos mercados. Todos os povos estrangeiros merecem respeito desde que comprem as nossas coisas. Poder económico - é esse o poder do futuro, meu amigo. 

Texto imaginado na prisão de Roma em Fevereiro de 1944, perto da morte, entre Leone Ginzburg e o homem que suporta a ideia civilizacional da falta de nobreza de espírito que alimenta o mundo contemporâneo.

Fonte: Rob Riemen. (2012). Nobreza de espírito, um ideal esquecido. Bizâncio, págs. 147, 149 e 151.

Sem comentários:

Enviar um comentário