domingo, 24 de maio de 2015

Leituras - Quando fui outro

Quando o lemos interrogamos o real continuamente e verificamos que parcela de identidade se nos compõe. Em cada leitura descobrimos palavras novas, significados diferenciados. Em cada página que ele nos dá pensamos nesse pedaço de eternidade que é o presente, ameaçado pela efemeridade de um presente incandescente e o futuro maravilhado em tantas linhas de horizonte.

Em cada uma das suas páginas um exército de críticos e analistas enquadra-o em heterónimos, em possibilidades, em estados de espírito, em sensações múltiplas. As suas páginas são também a sua biografia. Ele concedeu-nos essa unidade desafiante que se confronta com o sentido que o real nos dá em oportunidades difusas e multicolores.

A sua biografia é uma impressão, um gesto de uma genialidade complexa e universal. Foi com ele que atingimos a universalidade dentro de um particular de pouca grandeza, onde sabemos distinguir a palavra, a dúvida e o sonho. Inventou, num mar de aparente solidão, uma nova forma de apresentar as palavras, de desenhar ideias de futuro, construindo uma língua, uma literatura.

 Ele somos todos nós. Aqueles que ele inventou nos quotidianos onde tantos seres particulares ganham a sua originalidade, a sua universal humanidade. Se há poeta, se há escritor, se há literatura, ele é tudo isso. É a demonstração de que um país é a sua cultura, a sua língua, as suas pessoas, a sua individualidade. Luis Ruffato olhou para esta universalidade e deu-nos um livro que selecciona os poemas dos principais heterónimos, sem os enquadrar nesse sentido, antes, organizando a poesia de Fernando Pessoa em temáticas que o permitem compreender. 

Da estranheza da alma, à ideia de renúncia do pensamento, ao sofrimento de cada um, num mundo sem referências, do cansaço como um barco numa praia deserta, as convenções sociais e a sua infeliz consequência nas realidades naturais, o amor que nos desafia belo e inútil, que não se revela numa vida breve. Luiz Ruffato tentou compreender a unidade de Pessoa e entender na sua obra literária o que ele próprio foi.

Descobriu aquilo que torna Pessoa universal, a ligação profunda entre arte e vida, procurando ultrapassar as sombras que nos cercam e encontrar "essa outra coisa linda", que somos nós próprios. Com esta antologia vemos melhor a grande dádiva que Pessoa deu à língua, forma de expressão e renovação de quem com ela quiser nascer, a esperança de sobressair sobre esse desamparo da vida, esse tempo longo, de vidas breves, como as nossas.

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