«Quem procura uma relação justa com a pedra, com a
árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito da verdade que o
anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso
esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.
Aquele que vê o fenómeno, quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de
atenção, de sequência e de rigor» (1)
Comemoramos, dois mil anos depois, o nascimento de um
mensageiro, de um profeta que nos quis ensinar, revelar que todos os homens são
iguais, que a compaixão é um valor absolutamente humano. Ele próprio,
incompreendido no seu tempo, estabeleceu os princípios de um nascimento novo. Nasceu no momento único do solstício
de Inverno, deixando-nos palavras e tons de luz, e a promessa do descobrimento
de uma manhã nova, a do dia branco de esperança no futuro. Sobre os seus princípios, uma ciência de palavras repetidas fundou uma
religião. Todos os anos comemoramos em rituais de cerimónia o dever de num dia
sermos especiais e de oferecer presentes.
Presentes pouco pessoais, distantes dos valores
que procurariam dignificar. O dia e o ambiente em que devemos ser o que muitas
vezes não somos, em que uma fraternidade universal adocicada pelo ambiente de
luzes, anjos e música nos mostram como participamos solidariamente na vida uns
dos outros. Um dia e tão aparentemente. Dois mil anos depois, na Palestina,
morrem pessoas em confronto ainda pela posse de uma promessa e de um
território, demasiado longe do que se poderia considerar divino e respeitador
dos valores revelados há tantos séculos. Dois mil anos depois, a ganância e o lucro fácil e imediato regem um reino de
interesses onde os agiotas e os seus princípios especulativos se sobrepõem ao
trabalho e aos direitos púbicos da comunidade. Dois mil anos depois, o homem
parece ter aprendido pouco.
Dois mil
anos depois, vivemos num País que se auto-governa sem ideias. Dois milhões de
pobres, velhotes esquecidos, a cultura do dinheiro neste tempo tão fraterno,
onde não há espaço para a memória. Vivemos na virtualidade de acções e valores.
Neste tempo, até o Templo e os que lá negoceiam parecem ameaçar o próprio
mensageiro e a sua existência. O privado em detrimento da causa pública, que é
a de todos. Neste tempo de solstício, sonhemos ainda que tal como a Primavera fará renascer
os campos e searas, também garantirá que novas gerações, mais lúcidas saibam
concretizar o melhor da dimensão humana.
Justamente, «a liberdade e a dignidade
do ser», nas palavras iluminadas de Sophia. Concretizar o sentido divino do
homem, sem lhe negar a sua humanidade. É esta
uma forma possível de comemorar o nascimento de um homem especial que revelou
que o Homem pode-se alargar numa comunidade de boa vontade. Se o Homem à semelhança do Universo é criado da mesma
matéria, da mesma energia concentrada nos átomos, esse entendimento não deveria
conduzir-nos a uma mais coerente relação entre o pensamento e a acção? Desde Cícero, a Marco Aurélio e Adriano, na longínqua civilização romana não
eram a Humanidade, a Felicidade e a Liberdade os sonhos nesse futuro que ainda
hoje se adivinha tão imperfeito?
(1) Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto
(Posfácio, pág. 73)
Sem comentários:
Enviar um comentário