domingo, 31 de agosto de 2014

Leituras - Sonhos azuis pelas esquinas

venho dizer destas ruas que o sol aperta, e as sombras e os panos e as tranças nas meninas que passam - crianças que olham o mar com a simplicidade das pedras, aqui onde todas as varandas penduram ausências de gentes por regressar. os pássaros voam parados, suspensos e próximos, dando sombra às árvores e graças ao céu azul. 

vejo telhados sobre as pedras e pedras sobre a ilha, mas o chão respira uma frescura humana, os panos vestem as pessoas e as pessoas buscam negócios de regateio. chega um barco cheio de palavras caladas. (...) mais tarde a noite dará voz às sombras, as sombras serão calmaria e escuridão. as árvores beijarão os pássaros. os dedos hão de alcançar um torpor de mansidão. (...)

o apito de partida é o sinal de chegada àqueles que decidem ficar.
é de tarde ainda e quase noite: são os pássaros que o dizem. no céu não existem lágrimas; chegou a lua; as árvores adormeceram e sinto no ar, nos restos desta tarde senegalesa, um arfar de madeiras. não vejo canoas, sinto apenas a sua dança, um embalar de braços e ondulações, uma cantoria de remos, um poema molhado no sal.

quero a lua sobre a mesa - junto ao peixe, ao molho, ao arroz que devolve à minha refeição o branco do luar. quero conchas rumando ao meu quarto vazio, quero lençóis plenos de uma maresia fresca - para que a noite resulte e, depois dela, nas frestas do meu lençol branco, a madrugada possa vir sorrateira aprisionar-me em mim.

quero um grilo calado, um pirilampo em sereno apagamento. vozes para voos rasantes, ou uma luz negra que, sem acordar, acabasse por adormecer. (...)

pela manhã, vi o sol no mar e as ondas do meu olhar. uma saudade amarela abateu-se sonre mim e eu ri - porque era cedo e porque as nuvens não tinham chegado ainda. havia um anzol no meu sorriso.
vi os homens perto do cais e as ondas por trás e os imbondeiros erto das crianças que esquivam as pedras de sorriso aberto.

(Os lugares que habitamos nem sempre são o que queremos ser e vamos por cidades onde queremos ser mais perto de nós, ver a luz distante em cada porto e os sonhos azuis, na cor imensa que faz recordar as possibilidades de todas as histórias. Uma viagem por cidades e por aquilo que mais precisamos, estar dentro de nós com o sonho na respiração).
Ondjaki, "Gorée", in Sonhos azuis pelas esquinas

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