sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Governar entre o medo e a mentira (II)

"Este discurso [do consumismo desenfreado dos portugueses] à direita e à esquerda mistura-se e há uma crítica de esquerda ao consumismo que acabou por ser recuperado pela direita. É natural que as pessoas na melhoria da sua vida procurem obter gadgets. Quem menospreza o acesso a estes bens não faz ideia do que era a vida antes de existirem máquinas de lavar. E uma certa esquerda tem uma crítica do consumismo que não tem em conta a circunstância de que muitos electrodomésticos facilitaram a vida a muitas pessoas, em particular às mulheres. Não se pode ter esta espécie de desprezo no celibato, que a esquerda muitas vezes tinha em relação ao consumismo. É preciso ter prudência.

A nossa memória da pobreza é um fenómeno social importante. As pessoas que há três gerações conheceram a profunda miséria e essas pessoas não tinham um grande dinamismo social, porque quando conseguiam obter alguma coisa poupavam até ao fim  da vida para se protegerem das contigências do mundo e são os seus filhos que vão ter o dinamismo que não têm. A memória da pobreza é castradora numa sociedade. Normalmente, a 1ª geração num processo de transformação não muda, mas os seus filhos mudam, porque já não estão presos pela memória dessa pobreza, tão drástica como estavam os seus avós. Houve aqui aspectos positivos e negativos.

Os pais pouparam mais, os seus filhos pouparam menos, mas ainda o suficiente para dar uma educação universitária aos seus filhos, para tentar encontrar melhoria através da educação, que são coisas importantes do ponto de vista simbólico e nacional. Os processos sociais não são higiénicos, não são  a preto e branco, são complexos e não podem ser demonizados, nem transformados em coisas positivas. E o que está a acontecer nos nossos dias é um falso inimigo que é fazer incorporar uma culpa que na realidade pode existir para um certo número de pessoas, mas não é socializável, nem para o grupo, nem para o conjunto da sociedade.

Porque quando nós analisamos o endividamento das famílias e das empresas que é igualmente muito significativo e nunca há penalização ao endividamento das empresas, como não há verdadeira penalização ao endividamento do Estado, porque apesar do discurso contra o esbanjamento, verdadeiramente o peso social da culpa não vai para aí. Tanto assim que as mesmas pessoas que fizeram contratos SWAP podem ir para ogoverno, não há aí nenhuma penalização social. Nenhuma! Nenhuma!

Eu conheço muita boa gente que fez os contratos das PPP, blindou-os em escritórios de advogados e depois foi para o governo negociar a desblindagem. Houve aqui alguma incorporação social ou profissional de culpa como aos mais fracos? Não, nenhuma!"

"O sentido do fim ou o fim consentido?", Porto, Serralves, 02.04.2014
(parte de uma intervenção de José Pacheco Pereira)

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