domingo, 20 de julho de 2014

Governar entre o medo e a mentira (I)

"O medo hoje é o de perder o pouco que se conseguiu. Mas esse medo tem outros caminhos que às vezes dão o mesmo resultado. Não é o mesmo medo existente no Estado Novo, onde existia um sentimento de impunidade com as acções realizadas pela polícia política. Não! O medo hoje é essencialmente o medo de perder o emprego, o medo da legislação favorecer o que os chefes decidem, quem deixa de ser promovido. Estes são medos de outra natureza.

Mas quando estes medos se institucionalizam na lei, veja-se as alterações na lei sobre o Despedimento, com a figura da avaliação de desempenho que 90% das empresas portuguesas  não têm e portanto obviamente o que isto significa é que em nome da avaliação de desempenho vai-se decidir que pessoa de que não gosta de A, ou B, porque sabemos que é assim. É a fragilidade do nosso tecido económico, que implica que é assim. E assim, quem tem condições deve falar, mas reconhecer ao mesmo tempo que muita gente com idêntica dignidade não tem condições para falar porque perde mais. Mas há muita gente que não tem nenhuma razão para não falar. E essa tem obrigação de falar.

Em segundo lugar, há uma questão muito perigosa, a interiorização da culpa. Um dos grandes sucessos deste governo foi-nos interiorizar a culpa pela crise que se vive nos dias de hoje. Quando se analisam as estatísticas, não foram as viagens à Tailândia, nem foram os electrodomésticos, nem foram os móveis que tiveram um papel decisivo, quer no endividamento das famílias, quer na crise globalmente. E portanto quando se faz este discurso para que as pessoas interiorizem a crise porque tinham comprado um móvel a prestações, isto não foi relevante na crise. A crise é uma crise do sistema financeiro e bancário, em que grande parte sai reforçada com maior poder político. Há um endividamento das famílias que é com a casa própria, esse sim tem dimensão. 

Mas quem é que era louco para há vinte anos atrás, tentar arrendar casas que não apareciam no mercado de arrendamento e por valores muito superiores as que apareciam e sobretudo porque as pessoas podiam fazê-lo, porque tinham condições e esse é o problema que nunca se diz. 

As pessoas tinham salário que lhe permitiam comprar a casa. A preversão aí é o que aconteceu com o arrendamento, que fez com que desaparecesse o mercado de arrendamento e as pessoas não tinham outro processo que começar a sua vida activa que comprando uma casa, coisa que os seus pais ou os seus avós faziam no fim da vida. Comprar casa própria era inteiramente racional e as pessoas não podem ser penalizadas à posteriori, porque existe muito esse mecanismo de penalização à posteriori, Claro que houve abusos e excessos, mas não têm nenhuma dimensão estatística. 

"O sentido do fim ou o fim consentido?", Porto, Serralves, 02.04.2014
(parte de uma intervenção de José Pacheco Pereira)

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