segunda-feira, 23 de junho de 2014

A destruição do Tua ou a hipocrisia por um reino de silêncio

«Havia um tempo em que, por estas colinas (sobretudo acompanhando o derradeiro fio de água do Tua, a caminho do Douro), descia um comboio vagaroso e pobre, sujo, com as madeiras ressequidas a desfazerem-se, os varandis das carruagens enferrujados, os tectos corroídos pelo tempo. Chovia lá dentro. Os vidros, em muitas composições, tinham sido quebrados - ou, pura e simplesmente, quebraram-se com o tempo, o uso, a idade. Nos carris, o comboio chiava até encontrar as primeiras vinhas do Douro, relembrando ainda a última paisagem do planalto. 

Quando o crepúsculo se despedia em Bragança, partia o derradeiro comboio que chegava ao Tua já noite alta, a tempo do transbordo para a linha do Douro, na direcção de Barca D'Alva. O percurso que desenhara no mapa, de Bragança a Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Cachão e Tua, só era conhecido por esse traçado ronceiro, lento, demorado (...) entre uma paisagem de oliveiras, azinheiras e falésias caindo sobre o que restava do rio. (...) O caso da linha do Tua evoca tragédias recentes; mais do que «tragédias», no entanto, evoca o isolamento da região.

Nada disto interessa em Lisboa, tirando excepções muito localizadas. A indústria do asfalto que tomou conta do País, acompanhada pela indústria da camionagem, pela indústria das portagens e pela indústria do esquecimento, não tem a ver com as velhas linhas férreas que desenharam a geografaia de um país onde os carris acompanhavam rios, fronteiras de província, planaltos áridos e solitários - e uma enumeração caótica de designações fora de moda. Ao longo dos anos, destruindo metódica e paulatinamente os comboios, desprezando as populações que os utilizavam e beneficiando os intersses da camionagem e dos combustíveis, o Estado preparou este cenário contra o qual há, hoje, pouco a fazer.

Uns, mais conformados, recordam; outros, menos conformados, resistem e combatem o quase inevitável fim destas linhas perdidas. Um resto de dignidade e de memória devia fazer-nos correr até onde o último comboio regional ainda corre - para o defender. O País - o Estado, os empresários, a indústria - dá o assunto como encerrado e abre auto-estradas, suja a paisagem, promove o grande progresso (...). Por isso, defender o último comboio regional, seja onde for, é combater este país abjecto que destruiu a nossa paisagem, a nossa memória e a geografia do tempo» (1).

(É um dos reinos de beleza que tivemos e que uma esclarecida classe política soube vender em arranjos de hipocrisia. O território é para alguns duas ou três avenidas do litoral, por onde uma arrogância dos bem vestidos proclamam as suas palavras vazias. Podemos sempre dizer, para os sucessivos desastres que foram alguns ignorantes que viveram acima das suas possibilidades, os que trabalhavam, os que tinham o privilégio de um salário por um trabalho, os que escandalosamente queriam uma reforma no fim de uma vida de trabalho. Estes servem! Isso explica tudo. Para alguma coisa somos mestres da não inscrição.
(1) Francisco José Viegas, in Revista Ler Maio de 2010

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