sexta-feira, 23 de maio de 2014

Eduardo Lourenço

" (...)Nunca perdemos o sentido do nosso tipo de existência. Um país sempre ameaçado na sua história política, sempre em perigo de perder essa autonomia fantástica e a nossa História é um perpétuo milagre novelado e só não é um milagre porque na verdade Portugal nunca foi apenas este rectângulo em que nós estamos e voltámos, que é o acontecimento mais extarordinário da História de Portugal dos últimos quinhentos anos. Foi outra coisa.

Um País que é quase um imperativo de vida, sobretudo para a nova geração, de ir para outros sítios, à procura de subsistir e de viver e de ser cidadão noutros locais. Lamentável por esta riqueza essencial de um País se estar a perder. Mas sempre fomos para outros sítios, para sermos os mesmos e outros. E dessa aventura nasceu o mundo que ainda fala português, que é o mais extarordinário que deixou e deixará no mundo.

O máximo que podemos conseguir é que na nossa casa não mandem realmente os outros. Conseguimos isso de uma maneira difícil através dos séculos e neste momento, quando pensávamos que estavamos muma situação de uma certa normalidade e sem problemas de desaparecer na história do mundo, confiscados por outras forças, nós encontramo-nos aqui, outra vez, com um sentimento de que não estamos neste momento à altura da História extraordinária que é a de este pequeno Povo.

Assim, o que discutir sobre o fim?
Fim, é uma palavra apocalíptica em si mesma. Fim é aquilo que, é uma leitura de nós mesmos como seres fundamentalmente temporais e históricos. É qualquer coisa que termina no sentido individual do termo, termina da maneira mais absolutamente possível. É o único absoluto que nós temos, é esse fim tomado realmente como um momento da existência humana não só individual, mas colectiva. E não estamos ameaçados por nenhum apocalipse, mas a aventura humana pelo tempo que nós podemos revê-la rapida e miticamente é uma aventura que não tem em si um sentido de perpetuidade absoluto. Ninguém sabe. 

Nós pensamos sempre que estamos num tempo que é o tempo dos tempos porque é o resultado de uma aventura que vem de trás. Nós não sabemos em que tempo estamos. Estamos num tempo nosso e num de medida europeia que nós pusemos quase ao universo inteiro. Ora que tempo é o nosso? Ninguém sabe, o que seremos daqui a cinquenta anos. Ninguém sabe qual é a finalidade deste mundo tão frágil na sua realidade. Ninguém sabe. E é por isso mesmo que a existência tem sentido paradoxalmente. Quer dizer nós estamos confrontados com um enigma e com um desafio, que não é só de medida humana, é de qualquer coisa que nos ultrapassa. Mas o único dever que nós temos, penso eu, é sempre o mesmo, é separar naquilo que nós somos, porque fomos nós que nos baptizámos a nós próprios.

Embora Deus, na Bíblia encarregue Adão de dar nome às coisas, porque ele curiosamente não se atreve a ser ele, Deus, a nomear as coisas. Se ele tivesse nomeado as coisas, a essência delas era a a nomeação que ele tinha feito. Assim somos nós que somos encarregados de reescrever, realmente a nossa própria experiência. Primeiro reinscrevemo-las por um paradigma de uma escrita que já está escrita nos céus, que é o alfabeto daquilo que nos cerca. Passados muitos séculos, o primeiro sábio moderno chamado Galileu, disse-nos "o mundo está escrito em caracteres matemáticos" e efectivamente isso é o começo da modernidade, a primeira palavra verdadeiramente moderna é esta, o mundo está escrito em carcateres matemáticos.

O que supõe uma capacidade de sermos nós, uma espécie de substitutos do criador, novos criadores desta realidade que chamamos Mundo. Escritos no mundo é a nossa primeira consciência, a nossa consciência do Mundo e esse mundo é o Mundo que realmente nos cerca. Mas qual é a leitura dele, que sentido tem? O sentido, somos nós, os indicadores do sentido. Se esse sentido é o mesmo de Deus, Deus o saberá, nós provavelmente nunca, mas isso é que é maravilhoso. Somos nós que temos de definir o sentido que seremos nós, no nosso próprio destino, quer individual, quer colectivo.

O sentido de Portugal enquanto nação entre outras nesta Europa frágil neste momento está assegurado. Nós não estamos confrontados com uma espécie de Alcácer Quibir. Provavelmente a Europa é que está confrontada com uma espécie de Alcácer Quibir de um género novo. Está para ser um espaço de um mundo, que depois de ter dado as suas leis, as suas regras, a sua ciência ao mundo, embora a ciência não tenha só raízes europeias,a Europa está neste momento num tempo de naufrágio do sentido.

De uma pluaralidade de sentidos, passámos de uma época enquanto a compreensão da nossa História, enquanto História moderna configurava duas ou três narrativas fundamentais que a explicavam - a nossa actualidade através do nosso passado. E, de repente essas leituras não são capazes, tornaram-se incapazes de ler de uma maneira eficaz, que nos faça compreender o que nos está a acontecer. O que nos está a acontecer, penso eu, é uma coisa simples.

É a passagem do mundo em que o paradigma histórico é comandado pela ideia de mudança que era legível, era verificável, para um mundo cujo paradigma se vê hoje, está anunciado, é o da metamorfose. Estamos mudando de mundo. Que espécie de mundo será esse? Ninguém sabe. Se soubesse, seríamos a Cassandra desse futuro e provavelmente uma Cassandra trágica como outra. O melhor é não sabermos, porque este mundo em que nós estamos já é significativamente enigmático e oferece-nos uma capacidade de sermos nós os responsáveis por esse futuro e nós não podemos abdicar disso. Se abdicássemos disso morríamos antes de morrer.

Eduardo Lourenço, Encontro - "O sentido do fim, ou um fim consentido?"
Porto, Fundação Serralves, 02.04.2014
(No dia do seu aniversário, a recordação de um encontro em que mais uma vez nos deu uma sabedoria profunda de interrogação sobre nós próprios).

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