segunda-feira, 17 de março de 2014

O voo das palavras

«Tenho a ternura simples mas aos nós. Como as tuas unhas são mais compridas do que as minhas desata-me isto tudo. Mãos impregnadas de nuvens, ossos suaves como o leite, vagarosos, certeiros. É bom nascer no instante em que o ar é mais frio do que a água. (...) no terceiro minuto a partir do crepúsculo, não no segundo, nem no quarto, a inventar uma flor.» (1)

«Fazer de cada página um barquinho de papel e deixá-lo navegar pelas sarjetas na esperança de que outra mão as receba», é um dos seus convites permanentes, no artesanato das palavras. Gostamos muito dele, quem nos comove pelas palavras que traçam a nossa respiração. Ele não acha nisso grande significado, mas realmente ninguém escreve como ele. 

Poucos pensam a literatura como oportunidades de crescimento, onde nos podemos ver, escritor e leitor com o espelhos do que somos. Raros respiram nas palavras a voz dos olhos e a limpidez descoberta do desconhecido. Olhá-lo com os seus contornos esbranquiçados, o jogo de mãos quando nos lembra os pedaços com que construímos a realidade, o olhar pensativo e o sorriso doce de quem sugere interrogações da nossa existência, são outras formas de aprender a respirar com a vida.

As suas palavras são quase tudo. Apresentou-nos a inteligência, mas também a humildade de criança, sempre a questionar o que somos. Deu-nos nas palavras a inspiração de momentos sublimes, onde nos revelou como precisamos do sorriso e de chegar à pertença de atmosferas tão etéreas como a nuvem, o pomar e os pássaros. Falamos de António Lobo Antunes, um arqueólogo da vida, onde se misturam as perguntas e os sonhos, como realidade única da nossa dimensão humana.

Tratar aqui dessa revelação, neste curto beco de palavras é uma tarefa de alcance miscroscópico e sem qualquer sucesso. É mais, é só, a apresentação de um amor, mais do que a sua explicação. Os livros de António Lobo Antunes não se explicam. Eles ambicionam chegar à respiração individual de cada um de nós, documentando o silêncio, estimulando a abertura das nossas portas, dando-nos o material «a pedra de que somos feitos».

Não há nas suas palavras narrativas com desejos de idealismos impossíveis, nem panfletos sociais, apenas o possível que nos habita. Nas suas palavras discute-se aquilo que nos organiza, a morte, e por isso a vida, e assim o que a dignifica, o carácter, a consciência, a inteligência, mas também a bondade e a alegria. Os seus livros são só companheiros, oráculos de um material, a vida, onde se tenta ultrapassar a solidão e marcar renovados encontros onde nos relembramos e amamos.

Encontros de voz e doçura onde em cada acordar ansiamos receber novos vestígios da manhã que nos liberte do cansaço do tempo. Em Babilónia, claro. Aqui, onde com os olhos no mar reconstruimos o ser de modo a sermos inteiramente humanos, com o espanto, a incerteza e o silêncio. Em Babilónia onde nos confrontamos, onde jardinamos a alma com as nossas contradições e onde percebemos que só podemos ser material de uma «dignidade inteira e completa». 

Seres universalmente finitos, onde nos compreendemos feitos de fraqueza e genialidade, «de ranho e poeira cósmica» e onde em cada página ficará como um longo caminho onde aspirámos à vida em todas as suas formas. E afinal seremos só e apenas principiantes desse tempo inicial, límpido, mágico de deslumbramento. Poderá a Literatura ser «a infância finalmente reencontrada» (2), num tempo contínuo de conquista e esperança? Ele tem-nos ajudado nessa magia do tempo.

(1) António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas, Página 81
(2) Georges Bataille, citado por Fernando Savater, A Infância Recuperada

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