domingo, 16 de março de 2014

Leituras - Mrs. Dalloway

"Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria flores. (...) 
Que delícia! Que mergulho! Era sempre assim que se sentia em Bourton, quando, com um leve chiar das dobradiças, semelhante ao que agora ouvia, escancarava as portadas das janelas e mergulhava no ar puro. Como era fresco, como era calmo, mais silencioso, muito mais do que ali, o ar ao início da manhã; era como o bater de uma onda, o beijo de uma onda; frio e cortante, e contudo solene, sentindo como sentia, virada para a janela aberta, que algo maravilhoso estava prestes a acontecer; a olhar para as flores, para as árvores de onde a neblina se desprendia, para as gralhas que se erguiam, que se deixavam cair. (...)
Agora, nunca mais diria de ninguém no mundo que essa pessoa era isto ou aquilo. Sentia-se muito jovem; ao mesmo tempo, indizivelmente envelhecida. Atravesssava as coisas como uma faca e, ao mesmo tempo, ficava de fora, a olhar. Tinha a perpétua sensação, enquanto observava os táxis, de estar longe, longe, muito longe, no meio do mar; sempre tivera a sensação que era muito, muito perigoso, viver um só dia que fosse. (...)

São as visões que flutuam incessantemente, que contornam as coisas, que interpõem o rosto entre elas e a realidade; dominando frequentemente o viajante solitário e tirando-lhe o sentido da terra, o desejo de regressar, concedendo-lhe por sua vez uma paz absoluta, como se toda aquela febre de viver fosse a própria simplicidade; e míriades de coisas se dissolvessem numa só; e aquela figura, feita com o é de céu e ramos, se erguesse do mar turbulento como uma forma que pode ser sugada para fora das ondas e fazer chover das suas magnificentes mãos a compaixão, a compreensão, a absolvição". (1)

(Um livro que discute uma procura íntima, a procura de uma identidade, a insistente procura por um sentido interior de uma mulher que faça sentido por si, por ela, não por respostas sociais convencionais. Uma narrativa sobre a vida que construímos em cada momento por nós, sem os recursos sociais e as suas avaliações. Analisando o seu real, as suas relações diárias, Clarissa questiona-se o que significa ser cada uma das nossas possibilidades. Um livro onde a modernidade do romance se constrói pela capacidade de absorver o real, sem uma definição particular do que somos). 

(1) Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, páginas  13, 18 e 67.

Sem comentários:

Enviar um comentário