« Cocteau dizia que há homens com com coração de diamante que apenas reagem ao fogo e a outros diamantes e negligenciam o resto.
É junto destas raras vocações de sarça ardente que me sinto em família,
o que equivale a explicar que quase sempre estou só. Mas não posso
queixar-me: os acasos da vida ou o facto de navegar, por instinto, na
direcção certa, fizeram que encontrasse, de longe em longe, Açores e
Madeiras no vazio das ondas (...).
Eugénio
de Andrade, vulcões de camaradagem exigente e limpa, ilhas fraternas de
rigorosa ternura, abrigos de pedra suave onde encostar a inquietação da
febre, pessoas que nos reconciliam com a noite mais escura da alma de
que Scott escrevia, por dela nos trazerem vestígios da manhã. E é de
Eugénio de Andrade que falo hoje, perpétua varanda de basalto em chamas
de frente para o mar.
Chamam-lhe
o amigo mais íntimo do sol: de acordo, se o sol for obstinado e severo.
Chamam-lhe poeta: de acordo, se as palavras nos trazem notícia da
veemência do sangue. Chamam-lhe difícil: de acordo, se notarem a bondade
de menino na pomba do sorriso que de tempos a tempos acende os passos
seus e os nossos e nos mostra a única vereda que caminha a direito,
macieiras fora, na direcção do rio. Não conheço ninguém com gestos tão
longos e com uma tão aguda inteligência de alma. Onde poisa a atenção do
ouvido tudo se torna búzio. Onde descansa os dedos tudo se torna gato
comedido e atento. Onde os olhos lhe nascem aprendemos com ele o
intransigente júblio do mundo. E no entanto que geografia de dor no país
do seu rosto, que discrição no sofrimento, que impediosa dignidade
medida em cada sílaba. A total ausência de vaidade do seu orgulho foi o
que, ao encontrá-lo pela primeira vez, mais profundamente me comoveu.
José
Cardoso Pires, que não tinha admiração fácil, contou-me do poema que
Eugénio compôs na morte de José Dias Coelho, quando os heróis
retrospectivos se calavam de medo nos anos de alcatrão sujo da ditadura.
Não um panfleto, não um manifesto, não um grito: apenas a serena voz de
um homem falando de outro homem, fitando-nos da sua altura terrena e,
por consequência, desmedida. Um dos seus livros intitula-se Rente ao
Dizer e esse rente ao dizer, despido do que não é corpo, devolve-nos a
nós mesmos na condição de bichos sublimes em que nas páginas que acede a
publicar nos tornamos.
Ainda
que em guerra Eugénio reconcilia-nos connosco ao deixar entrever os
degraus que nos falta subir para estarmos lá em baixo, no
lugar que é o nosso, manchados da comovida urina e dos líquidos
obscuros que nos protegem ao nascer e nos esperam, na sombra da morte, a
fim de nos ajudarem a partir, pobres criaturas mudas vestidas de ranho e
de poeira celeste. Para além da amizade que nele é dura e nobre, isto
lhe devo também: o retrato da minha condição e a certeza de que algo
para além de mim continuará nos seus versos, seja pássaro, nuvem ou
laranja madura.
Escrevi
um dia que quando o coração se fecha faz mais barulho que uma porta.
Não imagina como lhe agradeço, Eugénio, que o seu se mantenha calado num
vigilante desvelo, convidando-me a entrar onde uma máscara de bronze
nos aguarda para ficar connosco, naquela sala aberta rumo às palmeiras
da voz. » (1)
António
Lobo Antunes, sobre Eugénio, num retrato de um amigo, no dia em que
lembramos o nascimento de um poeta que de forma imensamente bela nos deu
a musicalidade e os limites do coração perante o tempo.
(1) António Lobo Antunes, «Bom Dia Eugénio»,
in Segundo Livro de Crónicas, Págs. 301-302, D. Quixote
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