Há
noventa e oito anos que nasceu nas serranias da Estrela, para criar uma obra de trabalho de palavras, um trabalho artesanal, por
onde romanceou a nossa existência que em tantos momentos se cerca da
solidão e da interrogação do eu, num universo esquecido a uma ideia de
protecção maior.
Escreveu
alguns dos mais belos textos sobre a condição humana, os limites do
espiritual e o corpo que nos embeleza os dias, os sonhos de conquista e a
respiração. Foi um escritor de dimensão universal e textos como Manhã
Submersa, Aparição ou Em Nome da Terra são livros a recuperar pela
vastidão dos horizontes com que humanamente nos confrontamos na nossa
individualidade. O excerto de Manhã Submersa, um livro marcante na vida
de gerações pelas dúvidas com que confrontou o cinzentismo do real:
"(...) o
peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se
sente. Nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força
de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. Exactamente porque
toda a vida que tive sempre se me representa investida da importância
que em cada momento teve. Como se eu jamais tivesse envelhecido. (...)
(...) Eu
vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por
isso a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada
era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia
sempre outras coisas à minha volta que eu não supunha, e que essas
coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa
e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a
importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia a
voz por sobre mim e me esquecia. (...)
(...) Quando
algum de nós se afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância
alarmada dos prefeitos o trazia de rastos cá para fora. Os superiores
sabiam que, à pressão exterior, cada um de nós podia refugiar-se no mais
fundo de si. Como sabiam também que a descoberta de nós próprios era a
descoberta maravilhosa de uma força inesperada. Nenhuns sonhos se
negavam ao apelo da nossa sorte, aí na nossa íntima liberdade. Por isso
nos expulsavam de lá. Mas, uma vez postos na rua, havia ainda o receio
de que as nossas liberdades comunicassem de uns para os outros e
ficassem por isso ainda mais fortes. E assim nos obrigavam a
integrar-nos numa solidariedade geométrica, ruidosa e exterior como de
ladrilhos."
Vergílio Ferreira, Manhã Submersa
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