Na
primavera a quinta enchia-se de abismos de verdura no parque sob os
plátanos, as bétulas, os carvalhos, havia um intrincado, onde rente ao
chão cresciam os morangos selvagens muito pequeninos e vermelhos como num conto de fadas. Para os colher picava-me e arranhava-me e rasgava os bibes e os vestidos. Aliás as crianças daquele tempo andavam sempre arranhadas e esmurradas por mil aventuras.Tínhamos continuamente "os joelhos deitados abaixo" das inúmeras correrias e trambolhões.
Nas
cidades, excepto nos centros, havia mais jardins e quintais, mesmo nos
bairros pobres. Nós morávamos na periferia da cidade, entre a cidade e o
mar, e à roda havia campos e campos e pinhais. Aí corriam e saltavam as
crianças pobres, os "garotos da rua", como se dizia. Andavam quase
sempre esfarrapados e descalços, alguns estariam subalimentados e alguns
habitavam miseráveis casebres. Mas tinham para si vastos espaços livres
e lúdicos, o ar fresco, a sombra das árvores, o sol, o verde dos
campos.
Nâo tínhamos por
eles grande admiração pois eram demasiado destemidos, saltavam todos os
muros, corriam como gamos, trepavam às àrvores como esquilos e, com um
galho de árvore, dois cordéis e uma tira de borracha fabricavam fisgas
infalíveis. Hoje terão melhor alimentação, mais escolas, mais
assistência médica, e as suas famílias terão melhores salários. Mas o
desenvolvimento da cidade, em troco do que lhes deu, tirou-lhes o ar
livre e o espaço da sua expansão. Por isso tanta agressividade, e droga e
crime entre os muros cinzentos do inabitável. Naquele
tempo, quando corriam e saltavam entre campos e pinhais, mesmo
esfarrapados eram reis. Pelo menos assim nos parecia a nós que, sempre
que podíamos, abríamos o portão ou saltávamos o muro, para os seguirmos como seus aprendizes, embora sabendo que nunca igualaríamos nem a sua velocidade nem a sua pontaria.
Assim, também
nos longos verões das férias dessa época, o nosso pai dava sofisticadas
canas de pesca, com pequenas bóias encarnadas que mostravam o menor
toque. Acocoradoss no rochedo pouco, e às vezes nada, pescávamos. Puxávamos a linha antes do tempo, dávamos esticões e o peixe quase nunca ia no engodo. Mas nos rochedos próximos, os filhos dos pescadores com o anzol de drogaria e um cordel pescavam sem parar e enfiavam cachos de bressolhas contorcidas no gancho de arame. Por isso os pescadores chamavam ao seu trabalho "arte".
(Segunda parte do de "A casa desmedida", integrado nos inéditos que a BN abrirá oa público em 2016).
Jardim Botânico de Porto Alegre: pinheiros, ciprestes e palmas-de-ramos.
(via http://commons.wikimedia.org)
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