domingo, 28 de abril de 2013

A casa desmedida I

Pela palavra descobrimos memórias, cores, sons, imagens, figuras que se eternizaram pelos momentos distantes no tempo com que os vivemos, mas são pelo excercício da memória, pelas letras experiências de construção do presente. Em alguns posts deixamos um inédito de Sophia, nessa dimensão única do passado reconhecido com o seu olhar.

No Porto a minha vida passsava-se entre duas casas: a casa de meu pai e da minha mãe, onde nasci e vivia, e a casa da minha avó, que ficava ao longo da rua, e onde durante os longos, longos anos de infância, adolescência e juventude eu ia quase todos os dias. 

Ou melhor: não era propriamente a casa da minha avó que eu ia mas à quinta que a rodeava - os maravilhosos jardins, os buxos, as rosas, as camélias, as glicínias, os muguets - os altíssimos plátanos do parque e os seus troncos onde estavam escritas iniciais e datas e, às vezes, desenhados os corações de todos os namorados da família, as suas penumbras verdes na Primavera e no Verão, a luz doirada do outono e o chão juncado de folhas, o desenho dos ramos nus no céu frio de Inverno, o cheiro intenso e húmido da terra, do lago  e dos musgos - o pomar, o ténis, as hortas, os tanques, o pinhal, os campos - tudo isso era para mim um mundo inesgotável de contínua descoberta.

Nas clareiras do pinhal cresciam cerrados os fetos que em pequena me chegavam aos ombros e formavam uma grande massa verde ondulada, onde eu e os meus irmãos pretendíamos tomar banho de mar. Mergulhávamos nos fetos como em ondas, fingíamos nadar, o que nos divertia infinitamente e me punha em grande estado de euforia - saltávamos, ríamos, mergulhávamos entre as folhas ásperas dos fetos, rente ao perfume da terra.

Lé em cima baloiçavam as grandes copas dos pinheiros mansos. De repente passavam bandos de pássaros. Estalavam ramos, tudo estava cheio de múrmurios. Ao longe avistava-se o mar brilhante e o friso branco das espumas. Tomar banho nos fetos do pinhal como tomar banho de mar na praia, era a nossa união com a felicidade do terrestre.

(Excerto inicial de "A casa desmedida", integrado nos inéditos que a BN abrirá oa público em 2016).

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